Liberdade, Sensibilidade, Solidariedade!
Foi na madrugada de 24 de fevereiro que a Ucrânia sofreu os primeiros abalos da invasão russa, que desde então cavalga o território por vários dias. A partir daqui a vida, tal como a conhecemos, nunca mais será a mesma. O estado do mundo hoje revela-nos a fragilidade de um planeta – já outrora comprovado pelos efeitos da instabilidade climática e da crise da biodiversidade – que num instante, e neste caso pelas mãos de um único homem, pode mudar o seu rumo, quebrando a aquela que se julgava uma firme harmonia.
A instabilidade criada gerou, no entanto, uma onda de solidariedade, um poderoso cordão humano que nos confirma que afinal saberemos sempre o que é o ser humano. Um ser capaz de empatia, corresponsabilidade e união. Tanto mais que incitar-lhe o ódio, enquanto sociedade sob ataque e opressão – como o disse Yuval Noah Harari – apesar de ser um sentimento horrendo, promoverá uma resistência infindável, uma força que surge inesperadamente vital. Importa enfatizar, contudo, que um agressor é um agressor em qualquer lado do mundo; que quaisquer vítimas de injustiça têm o mesmo valor não importa a cor, a língua, a cultura. Se aos ucranianos estendemos a mão, concedendo empatia e misericórdia, o mesmo devemos fazer pela Palestina, pelo Iémen, pela Somália, pela Síria… A urgência em condenar este ato do mesmo modo se deve colocar face à opressão chinesa a Taiwan ou aos muçulmanos uigures. A demanda por um movimento antiguerra (antiautoritarismo/absolutismo) é mais premente do que nunca, especialmente porque a invasão russa à Ucrânia representa, provavelmente, a maior operação militar na Europa desde a segunda guerra mundial.
Nestes dias, para lá da receção a milhares de migrantes em fuga, montam-se campanhas de apoio e de ação humanitária, propagam-se manifestações pelas ruas. Erguem-se cartazes, ouvem-se depoimentos aterradores, enquanto se aplicam sanções e apontam luzes incómodas que expõem os nomes que lucram com o sofrimento dos outros. Todavia, essa carga sonora é oscilante, e eu pergunto-me, será correto mantermo-nos afastados, aparentemente indiferentes, porque não nos podemos “ir abaixo”, porque “à distância e em decadência emocional, que podemos nós fazer pelos outros?” Será altruísta da nossa parte quedarmo-nos aparentemente apáticos, inertes? Se não podemos lutar com as mesmas armas daqueles que sofrem no terreno, recorremos às que temos disponíveis. Vivemos num século movido por canais online, através dos quais o poder da mensagem provém do facto de ser ampla e fortemente disseminado. Mas se por estes meios, cada um de nós, cada entidade e cada grande (e influente) instituição continuar a difundir ou patrocinar apenas os seus eventos, a sua agenda, compromissos e interesses, sem uma única referência, declaração ou mostra de solidariedade, que revela isto sobre a nossa humanidade? Está o ambiente artístico português a responder ao que se passa, ou, pelo menos, a mostrar o seu apoio?
Reconheço-o também, e é preciso assumir, que é normal estarmos entusiasmados com planos pessoais ou continuarmos a sorrir ao sair de casa, por termos a possibilidade de um dia soalheiro ou simplesmente mais um dia de rotina igual a todos os outros. É igualmente normal possuir um aperto no coração, partido pelo estado do mundo e o medo trémulo pela indefinição obscura do futuro; sentindo-nos tanto agradecidos pelos primeiros sinais da primavera, como culpados por nos mantermos seguros, saudáveis e com uns anos pela frente, que se presumem sãos, ordinários e pacatos. É aceitável sentirmos esta avalanche de sentimentos. O que não me parece plausível é desligarmo-nos do mundo, como quem diz, de nós mesmos.
Da comunidade russa anti-Putin chegam-nos atos expressivos de solidariedade, enquanto lutam eles mesmos pela sua sobrevivência, naquilo que pode também vir a tornar-se uma catástrofe nacional, ou, quem sabe, o ponto de viragem rumo à sua liberdade. Recentemente os artistas que representariam a Rússia na Bienal de Veneza recusaram a sua participação, afirmando que não há espaço para a arte quando civis estão sob ataque militar, fugindo e lutando por abrigo, enquanto do outro lado da fronteira aqueles que protestam na Rússia são silenciados e presos. Do lado ucraniano, a corajosa e obstinada investida partiu de uma das curadoras, que atravessou e saiu do país carregando a obra que representaria a Ucrânia, no seu próprio carro, por forma a evitar esta ausência no festival.
A própria crise atual – bélica, social, ambiental… – abre campo para um desdobramento de novos paradigmas estéticos, também eles promovidos pelos avanços conseguidos pela ciência, pela tecnologia e pelas relações sociais. A arte, para cumprir a sua função transformativa de atuar sobre e para as constantes urgências do planeta e da humanidade, deve redescobrir-se. O próprio conceito de arte deve expandir-se para lá do que geralmente se entende como arte e integrar-se na luta coletiva da vida atual, para recuperar a sua verdadeira função social. Precisa-se de um movimento pós-artístico que ultrapasse a formalidade e a estética, que priorize o conteúdo, a mensagem e o propósito. Sinergias focadas na compaixão, na consideração por valores ecológicos e nas relações mais do que interpessoais, interespécies, com o recurso a ferramentas multidimensionais (para lá da arte), capazes de promover um contacto aprofundado com a vida quotidiana, um mergulho no know-how, nos valores e nos ideais que a mesma engloba.
Se a realidade das consequências de qualquer crise é enfrentada por todos nós, a solução nunca passará exclusivamente por teorias académicas, antes pela criatividade produtiva da gente comum, a qual pode ser fomentada pela intervenção e imaginação artísticas. Está na arte a capacidade de voltar os seus recursos, mais do que num sentido de produção, para a regeneração. Esta resposta não advirá de uma doutrina singular, mas da combinação da criatividade de várias disciplinas, cujas promessas, apesar de tudo, são suficientemente tangíveis para nos evadir de uma alienação destrutiva e assim transformar o mundo. É certo que este se modifica e que novas urgências se exaltam; contudo, se tivermos em consideração que à parte da constante reciprocidade multidisciplinar da arte, das suas relações muitos frutos se colhem, perceberemos que perante a relação com o lugar e com cada época, a arte tem a força necessária à catalisação. Para isso devendo “liberate itself from the romanticism of anarchic confrontation, from the prison of facile irony (Baudrillard), from the regimes of representation (Rancière/Deleuze), in order to become a continuous movement in life’s natural processes, as part of its collective cultural endeaveours to become more humane and truly egalitarian.” [1]
Vejamos a arte, e por ela nos movamos, não mais como vetores de tradução do mundo, mas como agentes da sua transformação.
Segue uma lista de instituições internacionais apostadas em ajudar artistas Ucranianos e refugiados de todo o mundo:
Artists at Risk (também para artistas dissidentes russos e bielorussos)
[1] Rasheed Araeen, Art Beyond Art. Ecoaesthetics: A Manifesto for the 21st Century (2010).