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A Artéria é o Espelho da Alma

A exposição abre com um elevador. Com dois passos à frente e um salto para trás, apercebo-me que não me deixa entrar, proíbem-mo os tijolos da parede. Ceci n’est pas un ascenseur. Ceci é uma imagem. Uma fotografia, penso, uma pintura, observo melhor. A vontade de estender o braço para perceber a sua não-profundidade é muita, a malandrice infantil ferve em mim. Não teria mal, afinal é só um elevador…

Olho em redor, uma janela para um canal, uma cerâmica na parede, uma galinha a atravessar a estrada, porquê? Podemos somente pensar que seja para chegar ao outro lado. Ao caminhar pelas salas, é difícil perceber o fio condutor que liga as obras. Não fosse pela unanime expressividade das pinceladas dir-se-ia até que esta era uma exposição coletiva. Poucos são os artistas que têm um trabalho tão diverso, especialmente focado em pintura.

Denominada Artery – artéria – a primeira exposição a solo em Londres da artista Canadiana Allison Katz está em exibição no Camden Art Centre. A força da palavra Artery ocupa mais que o seu significado biológico. Soa a conduta artística militarizada, um modus operandi certeiro em contraste com o caracter ambíguo das obras.

As artérias são portas para fora do coração. Artery é uma expulsão do interior da artista. A própria refere o caracter autobiográfico destes trabalhos produzidos nos últimos dois anos. Escusado será mencionar a peculiaridade deste período, no entanto a peculiaridade das obras é inerente, não ao tempo, mas à criadora.

De natureza daliniana, os temas confundem-se entre janelas para a alma, memórias e screenshots dum piscar de olhos. Artery é sobre a “não-ordem das coisas”, diz Katz. Tudo isto entre couves, galinhas e bocas. A peculiaridade das peculiaridades será, contudo, um dos materiais de eleição de Katz, não óleo, não acrílico, mas arroz. Em várias pinturas, com um olhar mais atento, reparamos que a superfície texturada é mais tridimensional que à primeira vista, as diferenciações de cor e o pontilhismo são fruto das sombras e reflexos dos bagos de arroz. Descrevo-o como uma sensação visual táctil, cedendo à vontade de dar piparotes nos grãos para que saltem da tela apenas em pensamento.

Um dos conceitos que a artista gosta de explorar, para meu alívio de remorsos de instintos infantis, é a ideia de háptica. O toque e a sua relação com a pintura. Desde sempre que ouvimos que não se toca na arte, não é que Katz nos dê carta branca para tal, mas certamente é mestre em despoletar em nós a vontade primordial do fazermos.

Armada de símbolos, Katz não deixa nada ao acaso. As suas obras são imbuídas de significados implícitos. Numa das salas, cinco pinturas em painéis confrontam-nos de boca aberta. Na parte de trás de cada uma, uma couve. Estas obras são de carácter altamente biográfico pois a artista permite-nos tomar o seu lugar, de dentro para fora. A boca é símbolo do poder criador, como uma moldura, usa-a para enquadrar o que podemos apenas assumir serem desejos, memórias, vislumbres. Numa das imagens, entre dentes, vemos uma exposição de paredes cor-de-rosa onduladas com várias pinturas da autora, uma exposição dentro da exposição – este momento de inception era a imagem de promoção de Artery que me fez pensar ser o verdadeiro evento. A cada viragem de corredor espreitava do canto do olho à espera da imersão rosa que infelizmente não aconteceu, ri atrás da máscara quando se revelou a ilusão. Katz é versada na arte da deceção.

Entre o tromp-l’oeil e o surrealismo, de novo vemos o arroz, desta vez no céu da boca, aberta para nos deixar ver uma galinha. Katz refere que uma das razões pelas quais usa o arroz na sua obra é pela carga simbólica que acarreta quando sobreposto a outros elementos, como base da cadeia alimentar quando ao lado da galinha ou acompanhamento, ou como forma de retardar o consumo da imagem, fazendo os nossos olhos para sobre os grãos.

Todas as imagens são duma intimidade extrema, é revigorante sentir uma conexão tão próxima com o artista, todas as imagens parecem ter um diálogo direto com o espectador, fazendo perguntas a torto e a direito. Artery é de uma beleza rara, relembra-nos do porquê das coisas, ou da necessidade de perguntar porquê, faz renascer em nós o brilho de criança nos olhos. Na ambiguidade do detalhe somos deixados a flutuar na magia da arte.

Até 25 de março, no Camden Art Centre.

Licenciada em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa, com um pé em Londres e o coração em Lisboa, atualmente trabalha numa galeria de arte no Reino Unido. Depois de passar pelo mundo da moda, reviu o seu maior interesse na arte. É co-fundadora do Coletivo Corrente de Ar, que se foca na promoção de artistas emergentes e na democratização da Arte Contemporânea. O seu trabalho desenvolve-se em torno da curadoria, da consultoria de arte e da escrita.

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