Luvas Brancas de Pedro Valdez Cardoso e Amanhã de Nuno Sousa Vieira + Pedro Valdez Cardoso
Ao silêncio e à melancolia que nos acompanham enquanto percorremos a exposição Luvas Brancas[1] de Pedro Valdez Cardoso (1974), na Galeria Fernando Santos, acresce-se o caráter dual e irónico das obras que a compõem. Há o humor e o absurdo, há também o sentido de crítica e de reflexão que nos mergulham numa experiência introspetiva, numa procura por significados e leituras que de modo subtil o artista nos desvenda nas entrelinhas do seu trabalho, nas costuras dos seus bordados, nos duplos que nos oferece. A duplicidade – uma constante no corpo de trabalho de Valdez Cardoso – assume na exposição o papel de protagonista no decorrer da encenação: para além da duplicação de algumas das obras, destacamos os duplos sentidos e a importância do signo – não só dos objetos, mas também das palavras que complementam o discurso do artista – e o processo de dissimular/camuflar os objetos através do revestimento da superfície, como uma segunda pele. O carácter duplo que traduz a obra de Pedro Valdez Cardoso é também visível em algumas das temáticas exploradas na presente exposição, nomeadamente no binómio vida/morte, efémero/perene, dominação/subjugação, desejo/contenção. Num contrassenso propositado com o título da exposição, Luvas Brancas – expressão que nos remete para um evento cerimonial – somos confrontados com o humor dada de A meio da noite, 2004, através da qual o artista desconstrói a própria ideia de cerimónia que o título acarreta, ao apresentar-nos emolduradas na parede de entrada da galeria quatro luvas de cozinha costuradas de cor preta. Este processo de desconstrução é também visível em Love Lost Lust Lost Love, 2021, cujo nome brinca com as próprias palavras que o compõem, sugerindo como que um reflexo-duplo. Há um cariz dramático nesta obra, promovido desde logo pela encenação: um bouquet de jarros negros pousado no chão, espaço de ação e da existência. O bouquet remete-nos de imediato para a ideia de cerimónia e também de homenagem, ao mesto tempo que a cor negra evoca perda, finitude, possivelmente luto, transmitindo-nos no seu conjunto uma áurea poética de nostalgia e melancolia. Uma obra cuja beleza e simplicidade, também atua sobre o tempo, que aqui surge suspenso, impedindo-nos de assistir à deterioração do ramo de flores. As camadas, a ironia, o cinismo e os duplos sentidos da prática artística, fazem-nos olhar para o cinto que une os jarros num ramo, cromaticamente uniformizado com as flores. “Ao religar (atar, ligar bem), o cinto tranquiliza, conforta, dá força e poder; ao ligar (apertar, prender), ele leva, em troca, à submissão. À dependência e, portanto, à restrição – escolhida ou imposta – da liberdade”[2]. Noções de poder, o que domina e o que se deixa dominar, o que nos liberta e o que nos aprisiona, ambiguidades e questões do artista que perpassam a exposição e que nos confrontam em frases costuradas e expostas nas paredes: After awhile you could get used to anything; Sooner or later one of us will play the other, e na instalação de tecto em destaque na galeria composta por um conjunto de vasos com plantas, suspensos a alturas diversas num sistema idêntico aos arreios do imaginário equestre. Recorrendo à iconografia de equipamento hípico para adestramento de cavalos, a instalação Técnicas de Adestramento, 2013, concebida integralmente em couro artificial – à semelhança das frases nas paredes – promove pelo material que mimetiza, o couro, (resistente e flexível mas que implica mortandade e exploração) e instrumentos, os arreios, uma reflexão sobre os materiais utilizados pelo homem para domesticar animais, ao mesmo tempo que nos leva a questionar sobre os motivos que nos conduzem a essa necessidade de poder, de domínio e de obediência. Necessidades e vontades, relações de poder, domesticidade, controlo e submissão estão presentes no vídeo desarmante que partilha o nome que dá título à exposição: Luvas Brancas. Confrontados com o olhar penetrante do cavalo, lemos as legendas e deixamo-nos surpreender pela ironia, somos nós que nos subjugamos ao animal e ele que nos domina, é ele o nosso mestre e nós – homens – os domesticados, os que calçamos as luvas e o cuidamos, pois Most things just appear to be. Destaquemos a obra The long wait, 2021 cujo título, o material que a reveste -areia- e os objetos que a compõem convocam a ideia de tempo, uma ação em suspenso que se eterniza. Uma cadeira que já não baloiça e umas mãos que não agarram, elementos que mesmo assim resistem à longa espera -mesmo que esta seja a morte – a mesma resistência que encontramos em Hard, 2021, osso e carapaças de caracoletas como armaduras que subsistem ao tempo e à morte. A morte cuja referência é também notória noutras obras, tratada com a ironia e o cinismo a que o artista já nos habitou, seja através de signos (duplicados) que lhe estão associados como as gravatas negras em Un autre, 2021e The funeral party, 2021 ou através da presença da caveira em Untittled (Play Dead),2021.
Dos bordados e suturas sobre papel; das reflexões que se exibem nas paredes; do tratamento homogéneo das superfícies e da monocromia que acentuam o significado das peças e respetivos títulos presentes em Luvas Brancas, deixamo-nos conduzir para um outro lugar e um novo tempo, o do Amanhã[3], exposição que reúne obras de Nuno Sousa Vieira (1971) e Pedro Valdez Cardoso, concebidas de forma independente e sem diálogo prévio. Em exibição do outro lado da rua, no Espaço 351 da Galeria Fernando Santos, “o título da exposição coloca-a simultaneamente em dois tempos o presente, que é o tempo da exposição e o futuro, que é o tempo que a exposição reclama. (…) Perante esta dialética temporal o melhor é suspender o tempo”[4], ideia de suspensão que encontramos presente nas peças em exibição. Duas palmilhas gigantes dispostas no chão da galeria dão o primeiro passo que impulsiona o espectador ao seu encontro. Em cada uma delas lemos as palavras “Forward” e “Backward”, num discurso e ação contraditória que aludem simultaneamente à ideia de deslocação e de corpo em movimento. Encimadas por uma nuvem baixa – símbolo da metamorfose viva, em virtude do seu próprio vir-a-ser, – constatamos uma articulação entre estas duas obras que promovem um diálogo e também uma tensão entre os lugares que ocupam: a terra e o céu. As nuvens azuis de Sousa Vieira, objetos escultóricos suspensos no ar, surpreende-nos e cativam-nos pelo rigor geométrico e planos que se intercetam, em que noções de transitoriedade e permanência se entrecruzam, numa redescoberta de novos desenhos e formas num jogo de ilusões que envolve o espetador. A ilusão, o humor e a crítica estão presentes na construção cénica de um ambiente no qual predomina a manipulação de figuras e objetos. Objetos que adquirem novas configurações, revelando a importância que ambos os artistas atribuem ao processo construtivo e aos materiais que utilizam, de que é exemplo a Armadilha, 2018 de Nuno Sousa Viera, em que a experimentação e desconstrução de materiais utilitários – as cadeiras de madeira – aludem para transformação, ao adquirirem uma nova função. É sob e sobre esta armadilha suspensa que encontramos as obras de Pedro Valdez Cardoso: a camuflagem de Under, 2021(cujo padrão e tecido do tapete se estende às botas, comportando uma nova dimensão à expressão esconder debaixo do tapete) e os frutos exóticos de aparência fossilizada, que nos remetendo para um passado colonial, mas permitem pensar e imaginar um novo tempo, o do amanhã. A encerrar a exposição a beleza e mensagem poética da obra de Sousa Vieira From darkness to light, 2015: uma caixa de luz na qual se exibe um slide para lanterna mágica do final do século XIX, início do século XX – imagem que alude à passagem alternada, transitória e esperançosa, da escuridão à luz, a um novo dia, a um Amanhã.
[1] A exposição patente na Galeria Fernando Santos (Porto) de 15 de janeiro a 12 de março de 2022, integra 20 obras de Pedro Valdez Cardoso, incluindo escultura, instalação e vídeo, a maior parte inéditas ou nunca antes expostas e executadas entre 2003 e 2021.
[2] CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain: Dicionário de Símbolos:(mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Livraria José Olympio Editora S.A., Rio de Janeiro, RJ. Tradução: Vera da Costa e Silva…(et.al). 6.ª edição, 1992, p. 245.
[3] Inaugurada a 15 de janeiro de 2022 a exposição estará aberta ao publico até ao dia 13 de março.
[4] Citação da folha de sala.