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Once Upon a Time, de Rui Castanho

Apesar de o título nos remeter a um tempo enraizado no passado, Once Upon a Time, de Rui Castanho, é um convite a um tempo atual que nos diz que tudo é possível.

O artista apresenta, no espaço da Balcony Contemporary Art Gallery, um conjunto de treze pinturas de grandes dimensões, que parecem perguntar duas coisas: o que pode ser isso de pintar, e o que pode a pintura, no agora.

Ainda que munido de armadilhas visuais Rui Castanho nos remeta a um tempo outro – a criança e o adolescente com um imaginário em potência -, Once Upon a Time não submerge totalmente na armadilha do tempo, sendo antes um caso extremamente atual.

No espaço da pintura, e no seu lugar clássico e tradicional – a tela -, encontramos uma amplitude de materiais que parecem não cumprir uma regra; uma declaração de amor à pintura inscrita nas margens dos cadernos, que brinca com tempos e meios, confundindo-os, com a intensidade que é a do sentir de uma criança que acredita na magia e no poder das formas que nascem diante de si quando brinca com folhas A4 e os seus riscadores prediletos.

Embora os treze trabalhos apresentados na exposição possuam o mesmo formato, aludindo à pertinência e potencialidade de um discurso construído em torno da tela, as diferenças entre eles são bastante vincadas. Estamos nesta exposição perante uma pintura marginal, quer pelo modo como tecnicamente é executada, quer pelos temas em torno dos quais o artista trabalhou. Somos, assim, levados a crer que para cada uma destas pinturas o artista foi uma narrativa distinta, que para cada uma delas, viveu um espaço, tempo e corpo diferentes; uma diferença que permanece implicada no modo como Rui Castanho trabalhou as pinturas e nelas inscreveu os materiais – para cada tela uma ficção, uma história; matérias aplicadas nas pinturas que revelam uma liberdade de movimentos, e um ar(riscar), implicado em Once Upon a Time.

Nestes trabalhos encontramos a eficácia do gesto, um gesto que remete ao corpo – o corpo inteiro. Esse gesto apela à vista, é certo, mas apela também aos restantes membros. A ativação do todo corpóreo, a mesma que se revela na dimensão das telas e no trabalho que deduzimos estar implicado em cada uma delas – dinâmicas de movimento como subir, descer, esticar, o braço, a mão, o olho -, perfaz um dos aspetos a sublinhar da exposição. Ela é sensível nesse sentido, quer do ponto de vista do artista, quer no ponto em que pede a quem olha um movimento que abarque a totalidade do olho, do corpo. Nessa atitude, cada um poderá ficcionar com a composição dos trabalhos – adivinhar a ordem das camadas de óleo, barra de óleo, pastel seco, esmalte, acrílico, grafite ou lápis de cor inscritos na tela –, como um jogo dos sentidos.

As matérias condensam-se e expandem-se nestas pinturas com a coragem de uma criança que sem medo arrisca, risca, pinta – desenha. Assim, os exercícios implicados em Once Upon a Time, não se cingem apenas às preocupações que dizem respeito à pintura, elas estendem-se a esse outro campo que ocupa lugar na prática artística de Rui Castanho – o desenho.

O risco, e destaco o trabalho Sunscape (2020), Green aplle jelly head wants to know more (2021), mas também Show me the world (2021), Beyond anatomy (2021), ou Love affair (2021), resultam de inscrições – marcas -, nas quais importa destacar a eficácia do gesto e do movimento implicado numa duração – lá de onde vem a audácia das crianças e melancolia de um adolescente. Neste ponto poderíamos pensar sobre as diferenças implicadas entre riscar uma folha de papel e riscar uma tela, destacando que esta é uma via na qual os trabalhos de Rui Castanho se cumprem, eles fazem-nos refletir sobre a hipótese de se pintar como quem desenha, de que se  pinte com o descomprometimento de um risco infantil ou de um doodle inconsequente, que em Once Upon a Time migrou da folha – ou do ecrã -, para a tela. Há nestes trabalhos essa virtude técnica, de riscar com óleo o que parece ter sido riscado a caneta BIC, ou com uma esferográfica achada no bolso ao acaso, como Alice negligente que cai na toca do coelho (para adensar a narrativa).

Um movimento tradicional, nos antípodas da história da pintura, é aqui atualizado e brindado por uma forte carga contemporânea, pois ao carácter ilusionista que qualificou a pintura durante séculos, aqui parecemos voltar ao tempo em que era o risco. No entanto, não há nada de inconsequente nestas pinturas, nestes riscos, e todos esses efeitos que nos afetam com uma carga naïve, estão implicados num trabalho minucioso e detalhado, o único possível de modo a garantir o resultado final que podemos encontrar em cada uma destas pinturas. Ainda sobre este ponto, o trabalho The big picture (2021) simula uma pintura graffiti, com meios que se afastam das latas de tinta spray usadas para esse fim. Longe de um exercício de experimentação, intuitivo, as pinturas apresentadas disfarçam-se por detrás de truques, a magia de uma ingenuidade apenas aparente, para a qual contribuem os temas apresentados.

Em First love (2021), vemos um coração saído de uma lata de tinta spray, aludindo ainda ao graffiti. Uma pintura obsessiva, ou um murro no estômago, em que o coração pontilhado com uma multiplicidade de cores, sai de uma lata de tinta furada da qual escorre um desgosto – o primeiro amor -, ainda que coberto por purpurinas (a distância temporal do hoje assim já o permite).

A pintura Hocus Pocus (2021), com a magia implicada no truque de um personagem – um caixote do lixo com uma varinha mágica que nos mostra que a magia pode estar em qualquer lugar -, executa um truque sobre um fundo composto por uma parede de tijolos no qual podemos ver uma figura que surge magicamente. Diante dos nossos olhos, Rui Castanho brinca com a nossa perceção, não fosse essa uma das hipóteses para a pintura, ser um lugar de falsificação desafiando o olho que se parece deleitar com os seus próprios enganos.

Os tijolos são um motivo que atravessa vários trabalhos (Party zone world, 2021), realizando o cruzamento entre o antes e o agora – um Era uma vez contemporâneo -, em que o Éden não é uma paisagem idílica, Eden (2022), mas um jardim num fundo urbano, que pode ser um graffiti ao abandono, por cima do qual habitam formas e cores, e que de novo remetem para a eficácia do gesto e do corpo. Traços que mais que à força da mão, apelam à força do dedo. O dedo é parte da nossa atualidade e estas pinturas parecem colocar isso em evidência ao trazer à vista aquilo que nos é possível dedilhar nos ecrãs, ainda que em muitos casos, de um modo invisível.

O ecrã e a folha competem no modo como Rui Castanho planeou a exposição, em particular Eden, uma composição de grande formato – um tríptico que surge imediatamente à entrada da galeria. Os desenhos executados num ecrã são copiados para a tela, aludindo ao confronto entre o clássico e atual – desenhos que são pinturas que são desenhos – no caso de Eden, a herança do pixel, do paint, que migra para a tela, rasurada por barras de óleo que brilham.  Mas desta vez o brilho não parte da luminosidade artificial alimentada pelas baterias dos tablets e telemóveis, é antes um brilho alimentado pelo enamoramento da visão pelo esmalte, ou ainda, a intemporalidade da pintura.

Once Upon a Time está patente na Balcony Contemporary Art Gallery, até ao dia 12 de março.

Rita Anuar (Vila Franca de Xira, 1994), é investigadora interdisciplinar, licenciada em Ciências da Comunicação, Pós-graduada em Filosofia (Estética) e mestre em História da Arte Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Integra o grupo de investigação em Literatura, Filosofia e Artes (FCSH/IELT), desde 2020. Interessam-lhe os cruzamentos entre artes visuais, filosofia e literatura, a indisciplina e o vento. À parte da sua atividade como investigadora, escreve poesia.

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