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Entrevista com Tiago Baptista, autor da capa do mês da Umbigo

Miguel Pinto entrevista Tiago Baptista, autor da capa do mês da edição online da Umbigo, convidando-o a refletir sobre e a partir de uma obra atualmente em exposição na 3+1 Arte Contemporânea.

Miguel Pinto O único espetáculo é o da espera é o título da tua mais recente exposição, inaugurada na 3+1 Arte Contemporânea. Podes falar-me um pouco sobre este conjunto de trabalhos?

Tiago Baptista – O conjunto de trabalhos que produzi e selecionei para esta exposição foi sendo construído desde há algum tempo. Algumas pinturas foram iniciadas já há uns dois anos, talvez mais. Não costumo trabalhar com séries, ou programas, as pinturas vão acontecendo, vão pedindo para existir sem quererem ser um conjunto uniforme, coeso. É certo que há alguns temas, interesses que vão pairando, uma sombra comum que se vai esgueirando para dentro das pinturas, mas cada pintura tenta manter a sua autonomia. Depois, claro, há o momento em que elas têm de existir publicamente, aliás, talvez elas só existam nesse momento, e aí é que elas formam um conjunto. Por isso, digo “produzi e selecionei”, porque as pinturas e os trabalhos que estão nesta exposição têm momentos de existência diversos, às vezes até antagónicos. Antagónicos porque elas procuram a sua autonomia, mas também não existem sem as outras. Agora que escrevo isto, surge-me a imagem metafórica de que as pinturas talvez sejam como nós, nessa luta entre a singularidade e a necessidade e o prazer de viver em conjunto, rodeados de outros, na tensão do diálogo.

MPA promessa do tempo, a obra que serve agora de capa do mês da Umbigo, e que se encontra exibida nesta mesma exposição, está carregada de significação e de um impulso, que diria histórico – formalmente remete-me quase automaticamente para as Vanitas barrocas, mas também me sugere alguma da pintura contemporânea dos últimos 50 anos que se ocupou em refletir sobre as questões do tempo, a perceção, a visibilidade (estou-me a lembrar, num caso português, por exemplo, do trabalho de Noronha da Costa). Consideras que esta atitude autorreferencial, que tenta jogar não só com a história da pintura, mas também com as suas condições inerentes – num limite quase como um autojulgamento, uma vontade de controlo sobre a tua própria produção, diria eu – é um recalcamento necessário, um ponto de partida inevitável para qualquer uma das tuas obras?

TB – Acho que esta ideia de medição de tempo tem ocupado um espaço de pensamento significativo no meu trabalho, de maneira mais consciente nas últimas oportunidades de o mostrar, e julgo que ocupará algum tempo mais, se é que não tenha sido uma preocupação central ao longo destes últimos anos. Acho só que aconteceu que a minha relação com o meu trabalho e a minha prática, ou a maneira como me relaciono com a prática, mudou, acho que se adensou, mas ao mesmo tempo libertou-se de constrangimentos da figuração narrativa, pelo menos, daquela que estava a investigar, ou da maneira que o fazia – que era válida, e continua a ser – mas, por razões de uma conjuntura que não consigo explicar bem, tem havido um desvio lento noutras direções e a compreensão de que na pintura (aqui a pintura, porque é o campo, o terreno que me interessa cultivar, mesmo que de forma expandida) é um trabalho sobre o tempo, um freio, um suspiro que me ajuda a pairar, a suspender por momentos o curso da vida, vida entendida aqui como o turbilhão de emoções e sentimentos, mas também o quotidiano de ir comprar granola e shampoo. Um interstício. Então sim, acho que as pinturas – e a pintura – encerram, tanto pela representação que nelas se materialize como pela própria prática que lhe é inerente, uma condição temporal, de medição do tempo, de períodos de tempo. Esta exposição, no fim (talvez por princípio, também) talvez possa ser interpretada sobre o prisma dessa ânsia de suspensão como consequência desse alerta do tempo que passa, que escorre.

MP – Ainda sobre A promessa do tempo, a conceção desta obra terá partido de uma banda-desenhada que concebeste já há alguns anos. Podes falar-me sobre este trabalho e do modo como se materializou finalmente nesta composição? Que papel ocupa a banda desenhada na tua produção pictórica?

TB – Essa banda desenhada a que te referes foi feita em 2019 ou 2018, não tenho presente a data correta. Funcionou como um ensaio para muitas ideias sobre a vela como símbolo da passagem e contagem de tempo e, claro como objeto de fé. Não uma fé cristã, mas uma fé no absurdo, no absoluto. Acho que a fé é isso, uma crença absurda e sem sentido no absoluto (já de si, ideia tola). Por acaso, as velas, têm para mim um valor muito especial, íntimo e pessoal. Desde pequeno que me fascinam e quando se acendia uma vela em casa, ou porque a eletricidade falhava, ou porque a minha mãe acendia uma em devoção a alguma entidade religiosa, eu ficava como que encantado, siderado por essa luz, pela cera que escorria, e o tempo parava. Claro que quando o motivo não era religioso eu podia brincar mais à vontade, sem sentimentos de culpa e de vigilância autoritária divina, e manusear timidamente, às escondidas, a vela e ensaiar para onde escorreria a cera e que formações “geológicas” surgiriam desses acidentes. Fascinado com a cera líquida que solidificava, com o domínio do perigo da chama, do fogo, da luz. Normalmente, não tenho por princípio usar ou mencionar episódios pessoais para as pinturas, mas desta vez, fez-me sentido discorrer um pouco sobre isto, porque há um lado afetivo muito forte com este objeto que emana luz. Voltando à banda desenhada. A banda desenhada talvez seja a irmã tímida e sensata da pintura. A banda desenhada (BD) ocupa o lugar da narrativa sequencial que não existe na pintura. E contém muitas vezes a palavra. A BD é uma mistura de palavras e imagens em sequência, isso é tão apelativo como confuso e, por isso, tão fascinante. Em muitas ocasiões a banda desenhada serve de laboratório para as pinturas, mas não é meramente projetual, como o desenho tantas vezes é, ferramenta. Ela é como o cinema, uma possibilidade de pensar com imagens com tempo contado. É mais sobre elaborar uma ordem para várias imagens e palavras, no equilíbrio possível, na economia exata, para se conseguir contar uma história minimamente interessante, do que território de experimentação pictórica. É aí que reside o meu interesse na banda desenhada. E são poucas as oportunidades de usar cor, aqui. O universo editorial da BD em Portugal é reduzido, mas com propostas riquíssimas (com esforços incríveis, nem sempre reconhecidos, por parte de editoras como a Chili Com Carne, que publica BD dita alternativa e tem uma distribuição mais alargada, por exemplo), isso faz com que editar a cores não seja muito viável, e a autoedição nem sempre seja exequível, também. Mas isso seria motivo de conversa mais extensa, noutro lugar e tempo. O facto de dar aulas de banda desenhada no Ar.Co há 3 anos, colocou-me num lugar mais cirúrgico e analítico em relação a essa prática e, talvez por isso, tenho sentido um certo afastamento da maneira como abordo a minha prática pictórica, que estava mais próxima da maneira como abordava a banda desenhada, apesar de muitos elementos gráficos da BD terem assaltado as minhas pinturas de maneira mais declarada e assumida. De maneira geral, a banda desenhada é menos porosa, mais resistente a contaminações pictóricas, ainda que por vezes haja alguns momentos claros de experimentação gráfica e narrativa, e a pintura tem sido mais recetiva a acolher elementos estruturais da banda desenhada que possam ter algum potencial pictórico. Enfim, não é uma relação nada apaziguada e clara, como podes perceber, há aqui muito conflito e áreas cinzentas sobre as quais eu nem sempre consigo elaborar grande pensamento.

MP – Há uma ideia de cristalização do tempo que me parece recorrente nesta exposição – logo à partida pelo título da mesma, como pela incorporação de símbolos que remetem a noções de efemeridade (a vela, a sombra), eternidade (o caracol, a tartaruga, a cegonha), contemplação (o ermita), elementos que parecem convocar uma consciência existencial, um profundo sentido de duração e passagem. Vês as tuas obras como uma reação necessária ao mundo cada vez mais acelerado e digitalizado em que vivemos?

TB – Talvez o lugar da pintura seja esse, mas não sou moralista ao ponto de rejeitar essas ferramentas digitais. Aliás, encontro muitas vezes imagens em plataformas digitais e redes sociais que têm uma potência pictórica enorme e que me impelem a pintar. Há muito apelo pictórico aí, mas há um trabalho de respigador também. E muita intuição (talvez respigar e intuir não estejam assim tão distantes). Tento tirar proveito desse desenrolar infinito de imagens. Mas há muita distração nesse “espaço” e é-me difícil afastar e desligar disso. Tento, quanto posso, manter-me são nesse scroll eterno. É necessária disciplina.

MP – Qual é a tua relação com o tempo, com este sentido de espera que evocas no título da exposição?

TB – Sabes, a passagem do tempo angustia-me. Mas este é um sentimento generalizado a toda a gente. Esperar é uma aprendizagem. Talvez pintar – no fundo, esta coisa em que nos envolvemos, isto de estar em contacto com a arte – seja essa aprendizagem. Claro que não podemos deixar de considerar a dimensão económica e política do tempo, da espera. Quem tem tempo? Quem pode esperar? E então, por consequência, quem pode fazer e quem pode estar em contacto com a arte? E quem a faz, que tempo tem para a fazer, para esperar? Porque fazer arte é respeitar a espera. Enfim, esta seria outra conversa, talvez.

MP – A importância dada ao sentido e à reflexão nas tuas obras parece-me evidente. O pensamento, a ideia concebida é, normalmente, o estímulo de construção da tua pintura, o que te leva a realizá-la?

TB – Geralmente trabalho sem procurar sentido naquilo que faço. Claro que há um apontar de direção, mas costumo trabalhar sem projeto. Este pensamento que estamos aqui a ensaiar é coisa posterior, antes é o pensamento das imagens, das tintas, das emoções, sem possibilidade de descrever, de nomear. É pensamento sim, mas sem palavras. Apesar de trabalhar assim, não me demito da discussão, não me desresponsabilizo do que as pinturas e trabalhos que faço possam significar. Pontualmente pode haver um exercício de corresponder a uma ideia (geralmente se tiver uma proposta exterior) e vou caminhando assim, com a presença de balizas mais próximas, mas não tem sido muito comum. Não é que a minha maneira de trabalhar seja uma festança onde tudo é válido, mas também não consigo seguir por caminhos demasiado estreitos e retos. Implica erros, ajustes, deriva, conflito, abdicação, frustração, prazer, pedidos de ajuda, alguns momentos mágicos de sorte e azar. Em francês há uma expressão que me é muito cara: par hasard, que condensa estas duas palavras “sorte” e “azar” e significa qualquer coisa como “por acaso”. Há um filme de Robert Bresson que tem no título uma expressão parecida: Au hasard Balthazar, um filme que é um lamento muito obscuro e angustiante sobre o acaso e que apesar de nem sempre estar na mesma frequência emocional que eu, tenho como referência, por vezes dou por mim a dizer em voz baixa o título desse filme, tão baixinho que só o ouço dentro da minha cabeça e de repente ele já é só uma imagem, uma visão do desenho dessa frase escrita, como se fosse um mantra sonoro e visual que me ajuda a situar quando pinto: Au hasard Balthazar, Au hasard Balthazar, Au hasard Balthazar. Então, existem situações na pintura que se resolvem numa tarde e outras que demoram anos, assim, umas sem esforço, outras com mais insistência, mas geralmente por acaso. Enfim, pintar para mim é um pensamento sem palavras, um pensar emudecido.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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