DAMAS DA NOITE ou Como é Ser-se Um Outro
DAMAS DA NOITE, UMA FARSA DE ELMANO SANCHO, questiona as premissas que encontramos no fundamento da questão da identidade de género. E fá-lo com uma clareza (e um sentido poético) dificilmente alcançada por quem não se dê ao trabalho de questionar valores há muito aceites pelo status quo. DAMAS DA NOITE é uma provocação que leva ao limite a fronteira entre o que é ser mulher, ser homem e ser efectivamente o que se é, e consegue transformar tudo isso num espectáculo/performance cativante e pleno de ironia. As coreografias são exímias, a prestação dos actores intocável e o texto cheio de deliciosos trocadilhos onde se esconde o humor mais refinado. Fazer da sua identidade o ponto de partida para a construção da personagem é a função do actor e o sentido da representação no seu estado mais puro. Essa função é tomada por Elmano Sancho com uma dupla missão. Inclui a do homem que procura a sua própria identidade na construção da personagem Cleopatre, nome dado pelos pais à esperada menina que, afinal, nasceu menino. E que cenário poderia ser melhor, para assistir a essa construção faseada do duplo de si, que o palco de uma sala de teatro que, simultaneamente, se transforma no palco e na arena do mundo transgressor e subversivo do transformismo? Lexa BlacK e Filha da Mãe, protagonizadas por Dennis Correia e Pedro Simões, respectivamente, as duas drag queens surgem, a dada altura da sua performance, como dupla alegórica de um Paraíso onde há lugar para um anjo de asas negras, e em que se evidencia toda a ambiguidade e o desconforto que percorre a construção da narrativa. As maravilhosas transformistas fazem parte dessa missão de ajudar o homem/actor a construir a identidade/persona que é Cleopatre. Mas à medida que esta construção se desenvolve e que Elmano se transfigura na outra de si, em meio de muitas incertezas que vão surgindo ao longo da transformação há, igualmente, certezas que se impõem, como as de que “não basta vestir um vestido ou calçar uns sapatos de salto alto para especular sobre a condição feminina” e a ideia de que “é preciso ter mamas para se ser mulher como deve ser” passa a simulacro. As respostas encontradas nesta peça são desenvolvimentos de perguntas expostas logo à sua abertura, tais como “O que é uma mulher como deve ser?”, e “O que é que Cleopatre [enquanto persona] tem para dizer ao mundo?” E “Que pessoas são estas? São homens? São mulheres? São prostitutos? Travestis? São o quê?” Lexa BlacK responde por si, como “Preto, gay e drag” tomando a sua afirmação como o “acto político que é lutar todos os dias para ter uma voz activa.” Nestas afirmações, o drama pessoal que envolve Cleopatre abre-se ao (sub)mundo e ao sub(consciente) colectivo do transformismo para, no final da peça, ir-se aproximando da esfera impessoal do divino, a instância contemplativa e filosófica que reside no âmago de cada ser. Quando a mãe de Cleopatre faz a sua aparição ao filho transvestido, num holograma da Virgem projectado no cenário (artifício que funcionou na perfeição) são lançadas as duas perguntas centrais e as mais provocadoras de toda a farsa “Mãe, é verdade que os anjos não têm sexo?” Pergunta a que a mãe assente. E “Mãe quem é o meu anjo da guarda?” Acabada a festa, abre-se a súbita clareira do questionamento: Afinal, que espaço ocupa, quem cuida, quem exerce o seu direito e o seu dever a reivindicar a diferença? Este espectáculo visto agora, a 5 de Fevereiro, no Fórum Cultural do Seixal, foi apresentado em inúmeras cidades do nosso país e poderá ainda ser visto a 27 Março em Coimbra, a 31 Março em Bragança, a 20 Maio em Ponte de Lima e em dia a assinalar do mês de Setembro em São Paulo, no Brasil.
Elmano Sancho fará o lançamento do seu primeiro livro, que contém três textos: I Can’t Breath, Última Estação e DAMAS DA NOITE. O lançamento será no dia 27 de Março, Dia Mundial do Teatro, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, às 16h00. A apresentação do livro será feita pela Professora Doutora e ex-crítica de teatro Eugénia Vasques. O lançamento em Lisboa será no dia 9 de Abril, no Teatro Nacional D. Maria II.
Texto de Jini Afonso.
Jini Afonso não escreve ao abrigo do AO90.