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The D.E.A.D. Man, de Henrique Pavão

The D.E.A.D Man, de Henrique Pavão, é uma performance e um registo que acontecem em múltiplos planos.

O mais óbvio será o da própria citação. Ao recorrer à composição sonora de Neil Young para o filme de 1995 de Jim Jarmusch – um tema aliás recorrente na obra do artista, que se serve amiúde da recursão e derivação de campos vários do Cinema, da Arquitetura, da Arqueologia e da História para os seus projetos – Henrique Pavão situa The D.E.A.D Man entre a reencenação, a reinterpretação e a ligação emocional com a obra de Neil Young. A citação é um ponto de partida, um rastilho que se acende para uma reflexão profunda, cerebral e aturada sobre as matérias nas quais se debruça e que não deixam também de ser exercícios arqueológicos, de resgate. Extirpada do contexto visual e cinemático, a composição musical serve de ambiente sonoro para as memórias individuais, emprestando uma certa melancolia romântica à rememoração e, numa primeira instância, à performance de 3 de fevereiro de 2022, na Appleton BOX e, depois, ao pedal no plinto, que gravou essa performance. A atmosfera do espaço performativo e expositivo e a música são coniventes na ambiência estranha e absorta, tanto na reinterpretação de Pavão como na própria película de Jarmusch, filmada a preto e branco e pautada de momentos sombrios, mas também irónicos.

Um segundo plano mostra-se na própria natureza da performance. O corpo presente, em cíclico funcionamento repetitivo durante seis horas e um minuto, é uma perfeita citação aos limites variamente ensaiados do corpo na arte, a sua presença e ausência, a sua resistência e tolerância, o seu fraquejar e superação. A arte acontece nesse estado limite, entre a prostração e a transcendência, como se de uma meditação ou de um primeiro estágio para o transe se tratasse. Acontece quando os dedos começam a falhar as cordas depois de tamanha empresa, quando os tempos se desacertam, quando as pernas e as costas cedem com o peso da guitarra. O artista está presente, mas é o banco desocupado que o holofote ilumina que importa e que se assume como protagonista; o artista está presente, mas apenas num campo espectral, expectante, aguardando alguém que o acompanhe na parte rítmica da música ou no solo.

Um terceiro plano diz respeito à música e à noção de loop, de repetição. A repetição é um caminho para o tal transe, um estado abstrato para o qual a mente se abre e supera a mecânica do corpo. Mas é também um caminho para o esgotamento. Henrique Pavão esvazia a música e repete-a ao ponto da exaustão. O próprio se confessa, posteriormente, cansado da música. (Esta repetição poderia ser em tudo condizente com a modernidade do consumo cultural, da gratificação instantânea, reproduzida durante horas a fio, para depois cair na fadiga e no esquecimento.) Novas citações: Ragnar Kjartansson e a banda The National, com a canção The Sorrow, tocada durante 6 horas no MoMA PS1; Max Richter no Wellcome Collection durante uma noite inteira; John Cage com Organ2/ASLSP (As SLow aS Possible). É com eles que Pavão se mede, tentando superar o loop de Kjartansson/The National em um minuto.

Finalmente: o arquivo. Sobrepostas as duas componentes musicais – ritmo e solo –, a gravação da performance dura 3 horas e 30 segundos. O loop ilumina-se no pedal instalado no plinto, que simboliza a imortalização da memória e a sua fragilidade. O trabalho sobre a memória é, de resto, recorrente na obra de Pavão, não só a sua imortalização ou fragilidade, mas também o seu resgate, o seu esquecimento ou apagamento. Um só toque no pedal pode ditar a perda da gravação da performance. O pedal é o reduto da performance, uma caixa negra dentro de outra caixa negra que é o espaço onde se instala.

No limite, The D.E.A.D Man vê-se como um exercício cerebral e de destreza física, sem esquecer o sentimento e a emoção que perpassam pelos pequenos detalhes da música gravada, pelo abandono a que a escuridão nos deixa livremente, por aquela luz ténue que ilumina um plinto singelo que mais não é que memória e som de uma performance que já não se vê, um corpo que foi ultrapassado, uma fronteira transposta.

The D.E.A.D Man, de Henrique Pavão, na Appleton BOX até 17 de fevereiro.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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