Do zero ao infinito: Pequenos Fogos, de José Leonilson e Tomás Cunha Ferreira, na Brotéria
Numa das obras que produz para o contexto desta exposição, Tomás Cunha Ferreira recorre ao papel-alumínio, usando-o para cobrir 3 desenhos dispostos paralelamente, sugerindo silhuetas de janelas. Adiciona-lhes uma camada de cinzento, tornando-os irrespiráveis. Abaixo, uma face desenhada na parede é coberta com uma máscara, também de alumínio, escondendo-se. Pequenos Fogos não é sobre ele, dedica-se ao trabalho de José Leonilson. Tomás serve, apenas, como agente crítico, olhar mediador, nunca é evocado em quaisquer legendas, à parte do texto introdutório da exposição, a sua presença é notada pela ausência de Leonilson, como que numa retrospetiva disfarçada, mascarada, onde o diálogo se esfuma – um monólogo a duas vozes.
De acordo com a folha de sala da exposição, José Leonilson tinha um fascínio, admitido, por mapas – provavelmente, presumo, pela decifração convocada pelo objeto, pela inquietude do olhar sem lonjura que procura nele um sentido, uma orientação. Presumo, porque, a sua obra pode ser claramente entendida por esse ângulo – uma vontade de apreensão, de registo, a criação como quem anota, respira, onde o não objeto se torna facto dignificado, convertido em material, aberto a uma decifração, como o planisfério do cartógrafo que representa lugares onde (ainda) nunca esteve. É uma arte que comenta, retém pensamentos para que não se esqueça de si própria, cristalizando o seu movimento aleatório, sempre impossível de manter. É básica, poética, simples, inevitável. Compõem-se desenhos que são poemas, textos vagos que procuram quem lhes dê a mão, como em Pequenos Fogos, onde duas pequenas chamas – lembrando, simultaneamente, carimbos da ponta de uma esferográfica, uma escrita que queima – se acomodam, tensas, no éter da pequena, tornada enorme, folha de papel.
Este processo de agigantamento poderá ser o que leva Tomás Cunha Ferreira a referir-se ao trabalho de Leonilson como uma intensificação. A sua presença na exposição não se torna completamente ininteligível por esta dimensão – há uma discreta intensidade, intencionalidade, no modo como se adapta a Leonilson: veja-se, por exemplo, o bordado verde que colocou ao lado do expressivo, plástico autorretrato do artista brasileiro, uma vertigem abstrata, violenta entre uma queda de água e um jorrar de sangue; também a obra que compôs em diálogo com Saints, fools, toys onde procurou dar vida à imaginação do desenho de Leonilson, é composta por uma quase bandeira presa pelo pano ao teto, dirigindo o espigão, pontiagudo, ao nível do nosso olhar – uma relação insinuante quando atentamos no inevitável diálogo politico-cultural entre os dois artistas: Tomás, português, e Leonilson, brasileiro.
Este crucigrama de relações preocupa-se também com o espaço da galeria: vejam-se os desenhos de Tomás colocados aos peitoris das janelas, uns replicando-as, outros querendo condensar o azulejo da cidade a uma camada densa de líquido azul cobalto; colagens onde o papel impresso se sobrepõe ao escrito, a imagens, um papel quadriculado gritando DESVIO, em letras largas e estreitadas, uma frase que vai do zero ao tudo, e obras que se colam à parede, querendo calculá-la, compreende-la, tornando-se espaço. Ambos os artistas unem-se numa premissa comum: o triunfo da possibilidade como passagem para o infinito.
A maior surpresa da exposição está numa obra de que vemos, primeiro, o seu reverso. Para nos aproximarmos, teremos que a contornar pelo lado direito: deparamo-nos com uma enorme tela, Cara e Coroa, (sempre o “e” e nunca “ou”, sempre a soma, nunca a alteridade no trabalho de Leonilson) onde se dispõem, figuradas, o que serão duas faces da mesma moeda – que na sua figuração texturada, carnal lembram duas rodelas de banana. A obra é grande o suficiente para nos engolir, mas recusa a apresentar-se pelo impacto e arrebatamento, a sua identidade parece residir nessa primeira estranheza que tivemos ao vemo-la de lado – ela é uma visão de lado, ao lado, paralela, instintiva, inconsequente. O inesperado da sua escala é surpreendente ao pensarmos nas outras obras do artista brasileiro aqui dispostas, pequenas preciosidades, puríssimas, como os cabochões pintados em 3 stones searching for your eyes.
Essa delicada tessitura de afetos leva-nos ao bordado, elemento fulcral na obra do artista brasileiro, e aqui evocado por Tomás, tendo em conta a infeliz ausência de originais em disposição. É atraente o embrulho amarelo, um envelope com demasiadas dobras, disposto ao fundo de uma série de desenhos e colagens na primeira sala da exposição, ou o enorme exemplar presente no mesmo espaço, um polígono irregular como um retângulo comido, onde se aglomeram, aleatoriamente, cores, movimentos, bainhas propositadamente irregulares, diários de expressão – a crença de Leonilson na capacidade de entrelaçar dois pontos que se opõem.
Porque em todas as suas dimensões agregadoras esta exposição é, sobretudo, um lugar de memória. Todas as ligações e apagamentos são feitos em memória de Leonilson, replicando a sua visão e pensamento. Conforme anuncia, e se inicia, o único texto de sala da exposição: “Em 1993, José Leonilson morre com 36 anos, vítima de SIDA, deixando um legado de mais de 4000 obras. Esta exposição nasce de um convite feito pela Brotéria ao artista plástico Tomás Cunha Ferreira a fim de criar um diálogo com algumas peças de José Leonilson”. Somos, desde início, avisados do lugar onde vamos entrar, uma sepultura viva, espaço sagrado, apenas aparentemente confuso. O que ela nos convoca é essa capacidade de ignição, ao tornar grande todo o detalhe, como um mapa que vemos para nos lembrarmos do lugar a que remete. Esta exposição é um mapa – que queríamos mais completo, definitivo, mas que nunca recusa a preencher-nos. Solicitamos orientações.
Pequenos Fogos, de José Leonilson e Tomás Cunha Ferreira, está patente na Brotéria, em Lisboa, até ao dia 26 de fevereiro.