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Wow, de Sónia Baptista

Esta peça parte da ideia do belo, do feio e principalmente do sublime. Segundo a criadora, Wow procura materializar um pensamento, uma reflexão e uma poética sobre o sublime. Estreou dia 13 de janeiro no grande auditório da Culturgest. A cocriação é de Joana Levi, Gaya de Medeiros e Cire Ndiaye. A interpretação é das mesmas e de Sónia Baptista. Conta com a participação especial de Inês Gonçalves. O desenho de luz é de Daniel Worm, o cenário e adereços de Raquel Melgue e Mariana Gomes, o figurino de Lara Torres e Sónia Baptista, a música de Eduardo Raon, o desenho de som de Rodrigo Gomes e o vídeo de Raquel Melgue.

Sónia entra em cena ainda com as luzes da plateia ligadas. A maneira como o faz é um tanto cómica: dança ao ritmo de uma música que canta para si, dando pequenos paços movimentando o corpo todo. Chegada ao centro da sala dá-se conta da realidade da maioria das salas de espetáculo: está às moscas. Emociona-se, afirma que sempre quis estar diante de uma plateia às moscas. A mosca será uma imagem presente ao longo da peça. A dada altura, por exemplo, desce das varas de iluminação uma mosca gigante. Sónia Baptista aproxima-se cantando a palavra “mosca” com uma entoação distinta da palavra original, sugerindo que está a orar ou a evocar uma entidade espiritual. Ouve-se: “muuuuuscáááá”. Este momento é bastante sarcástico. No meu entender, faz alusão às pessoas brancas e privilegiadas que viajam para a América do Sul ou para o Sudeste Asiático à procura de se conectarem com a espiritualidade ancestral das culturas indígenas. Porque no meio da estabilidade financeira e na abundância material há algo que lhes falta, a cultura ocidental alienou esta gente com falsas necessidades e por isso a única maneira de sair desta caverna é ir para os Andes tirar selfies enquanto comem cogumelos mágicos num retiro espiritual, ir para a Bahia conectar-se com a Natureza e com o Candomblé, ou ir ao Tibete com o objetivo de se encontrarem através da filosofia budista.

Tudo isto é demasiado como refere Sónia Baptista. Um violino que toca música clássica acompanha o seu discurso sublinhando a qualidade irónica do mesmo. O Cirque du Soleil é demasiado, explicar a Bela e o Monstro para uma lésbica é demasiado, o porno japonês é demasiado. O discurso provocador menciona várias coisas que são demasiado, e o fio condutor de todas elas são as ideias do belo e do bom (conceitos inseparáveis na Grécia antiga). Lê-se na sinopse da peça que a contemplação da beleza era suposto produzir não só maravilhamento e deleite, como também aproximar o espectador de um desejo de justiça e um anseio por ideais superiores. São mencionados também os detratores do culto da beleza, aqueles que dizem que é através da feiura que transcendemos a aparência da matéria e que chegamos à verdadeira perceção do sublime. Este espetáculo pode-se dividir em monólogos, um de cada uma das intérpretes. Em cada monólogo são partilhadas histórias pessoais do passado e da infância. Estas histórias entram em diálogo com os conceitos do belo, do feio e do sublime. Dialogam com a visão romântica do século XVIII que ainda é presente no imaginário da maioria das pessoas. Quando pensamos em belo, feio e sublime estamos a reproduzir a herança ideológica e conceptual dos poetas e intelectuais daquele tempo. Fica claro que os estereótipos perpetuados entram em conflito com as histórias que estão a ser contadas, deixando evidente a influência que os mesmos têm nas nossas vidas, nos nossos sonhos, nas nossas ambições. Esta influência é quase sempre (senão sempre) negativa e traumática. Colocam-nos em competição e comparação constante com o outro, destroem-nos a autoestima. Cada monólogo tem o seu tom, mas todos eles partilham algo íntimo das suas vidas. O monólogo de Gaya de Medeiros é dramático e escuro, ao passo que o de Joana Levi é cómico e luminoso. Há ainda uma característica comum a todos eles, que é o facto da palavra dita ser ilustrada ou acompanhada pelo gesto. A coreografia de movimentos destes monólogos dá textura à cena e abre as possibilidades de interpretação daquilo que está a ser dito.

Excetuando os monólogos referidos, a coreografia desta peça é bastante homogénea, no sentido em que muitos são os momentos onde os corpos entram em osmose. Ou seja, movimentam-se em conjunto, um depois do outro, fazendo nascer o gesto pela relação com o outro. Há, portanto, duas presenças corporais destintas, uma individual que faz referência à sua intimidade, outra coletiva que invoca o comum e que dá conta das múltiplas particularidades e manifestações daquilo que é ou pode ser o belo, o feio e o sublime. Devido à invocação do comum entendemos que todas as questões sobre o belo, o feio e o sublime são em grande medida o espelho das nossas dúvidas, medos e inseguranças.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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