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Sun at Night: Um voto de esperança

Os meus olhos percorrem os quadrados pretos que mudam apressadamente, à espera de verificar as horas. O tac tac tac mecânico das roldanas é reconfortante, como se estivesse para aparecer a minha hora de embarque. Aguento o fôlego em antecipação da corrida até à plataforma. O rodar para.

“Is there something”

Retorque a placa. “There surely is…”, penso eu.

As minhas expectativas são abaladas, estivesse eu numa estação de comboios e não no Barbican Centre, estaria até preocupada. StilltheyknowwhatIdream gera um diálogo tripartido entre as duas placas e o espectador. Por vezes uma parece responder à outra, por outras as palavras são largadas para o vazio à espera de serem apanhadas. O espectador pode escolher que papel tem na conversa, mesmo que nenhuma das placas saiba que alguém as ouve.

Shilpa Gupta faz-nos embarcar numa viagem sem hora certa. O compasso é marcado pelo diálogo, pelos silêncios, pelas palavras que alguém um dia quis que fossem esquecidas. Sun at Night é uma ode ao censurado, uma celebração das vozes de poetas enclausurados pelas suas crenças e pelo seu trabalho.

Após a plataforma de embarque, somos levados pelo corredor curvo pontuado com dípticos de desenhos e textos entre outras esculturas. A exposição situa-se no The Curve, um espaço comissionado pelo Barbican para arte contemporânea, normalmente gratuito. Caracteristicamente experimental, é uma meia circunferência, com uma entrada e uma saída em lados opostos, conduzindo o visitante intuitivamente por um corredor sem princípio nem fim.

“Se me vão alvejar nessa altura

Quando o caos começa

E eu vou apertar com as minhas mãos trémulas

o buraco que foi o meu coração

E vão coser-me uma lenda branca

que encaixa”

Lê-se numa página.

“Gravado em sabão, memorizado, levado pela água. Depois, escrito em papel de cigarro, contrabandeado para fora da prisão”, acrescenta Gupta. Ao lado um desenho de linha encarcerado numa esquadria de madeira. Irina Ratushinaskaya escreveu estas palavras enquanto presa pelo governo soviético por fazer circular os seus versos de oposição ao regime. A ironia da perseverança.

Esta história que hoje nos parece tão longínqua aconteceu há menos de quarenta anos, em 1983. Esta história, tal como todas as outras afixadas nas paredes foram ou são ainda realidades que talvez não sejam tão distantes. Uma torre de pontas de lápis partidas, dois livros encaixados um no outro pendendo do teto, presos por um fio, por um triz, relembram-nos da fragilidade – da vida, da liberdade física e da liberdade de expressão – num mundo onde tomamos demasiado por garantido.

A exposição vai ganhando intensidade entre a partida, o percurso e a despedida.

Na última parte, somos arrebatados por um coro de cem vozes de poetas invisíveis. Na sala escura, os olhos demoram a distinguir os versos em papel perfurados por lanças de ferro que brotam do chão tal estalagmites e os microfones que caem do teto por cima de cada um. Dividida entre a falácia da multiplicação do espelho e a realidade, rapidamente me apercebo que nesta exposição não há ilusões, mas sim exatamente 100 destes espécimes.

Num gesto solidário, as vozes são mais fortes juntas, cantando em várias línguas numa nota de esperança por todos aqueles que foram silenciados. No entanto, ora soam a canto eclesiástico ou maldição cósmica, chegando a ser desconfortável estar na sala. Mas estou salvaguardada por saber que o sentimento passa, lá fora há luz, há ar, posso agora escrever o que eu quiser. Pudesse ser para todos assim.

A exposição Sun at Night de Shilpa Gupta pode ser visitada no Barbican Centre, em Londres, até 6 de fevereiro 2022.

Licenciada em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa, com um pé em Londres e o coração em Lisboa, atualmente trabalha numa galeria de arte no Reino Unido. Depois de passar pelo mundo da moda, reviu o seu maior interesse na arte. É co-fundadora do Coletivo Corrente de Ar, que se foca na promoção de artistas emergentes e na democratização da Arte Contemporânea. O seu trabalho desenvolve-se em torno da curadoria, da consultoria de arte e da escrita.

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