Mutirão[i] no espaço nowhere: um experimento em com(viver)
Germinar forças
“Você sabe o que a vida é para mim? Um monstro de energia… que não se gasta, mas apenas se transforma… (um) jogo de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo uma e muitas…; um mar de forças fluindo e correndo juntas, eternamente mudando” [ii]
Entrar em um espaço expositivo é calibrar um modo de atenção e principalmente, uma disposição de-com-para forças sensíveis, o que Deleuze descreve como perceptos e afetos[iii]. Ali se encontra um milieu extremamente ativo, desperto e muito, muito vivo. O espaço nowhere em uma esquina da freguesia da Lapa em Lisboa, além de ser uma galeria de arte contemporânea, assume o papel de berçário nutritivo para que novas potências germinadoras de vida-arte se adensem e criem pernas para correrem-acelerarem-deslizarem neste mundo. Uma “plataforma experimental para pesquisas, reflexões e práticas em arte contemporânea” é a definição utilizada pelas diretoras do espaço, a curadora Cristina Tejo e as artistas Marilá Dardot e Luiza Baldan. Esta proposta carrega tanta vitalidade, no sentido em que Nietzsche propõe em Vontade de Poder, como menciono à cima, que inevitavelmente ao entrar em contato com o espaço o fôlego se tranquiliza: há futuro(s)!
Di(gestão) como plataforma artística
(entusiasmo, exuberância, vigor)
Durante a minha visita à exposição Mutirão guiada pela curadora Cristina Tejo e a artista Dárida Rodrigues, escutamos o ruído do encanamento exposto no teto da sala – a água correndo nos canos, fluindo dos andares superiores do prédio até o rés do chão, onde a galeria está instalada. Cristina fala sorrindo: “Brincamos que o nowhere é o intestino do prédio.” Essa fala se hospeda nos meus pensamentos. Me parece uma figura de imagem importante: a metabolização (dissociação de compostos, transformando-os em energia) como expressão do trabalho artístico no contexto sociopolítico. O intestino, órgão digestivo, cumpre a principal função de manter o corpo nutrido, hidratado e funcionando corretamente.
A arte, em seu caráter experimental e transgressor, cumpre o mesmo papel. Contribui em cultivar energia vital pela sua capacidade de produzir vislumbres de novos mundos, novas formas de praticar e metabolizar Vida. Como precisamos deste suspiro revigorante em tempos de crise. (Quando a crise começou? Crise ambiental, crise política, crise sanitária, crise crise crise etc.) O espaço nowhere se dedica à este posicionamento idealizando um programa independente que promove a formação crítica e a visibilidade de novos artistas dedicados à uma prática experimental e inquisitiva, concebendo um campo de trabalho que muitas vezes nos parece infactível: desprendido das balizas do grande mercado.
Mutirão é uma das expressões deste apetite de transformação. Nas palavras da curadora: “Nesta exposição estão reunidos trabalhos doados por 22 artistas já consagradxs em prol da formação, experimentação e visibilidade de 25 artistas que participaram de nossos laboratórios de acompanhamento crítico ou continuam como parte de nossa comunidade. O Clube nowhere é um experimento próximo a uma cooperativa de artistas em que obras são vendidas pelo mesmo preço sem visar lucro. Toda a verba advinda da venda das obras é revertida para a manutenção do espaço.”
A exposição vigente se sustenta neste caráter metabólico de assemblage[iv] de diferentes forças e potências poéticas em vantagem comunitária de produção de energia. Uma manifestação do que Spinoza conceptualizou em corpo-conatus[v]: entidades que se esforçam para aumentar seu poder de atuação formando alianças com outros corpos. Ou ainda em Deleuze em “adsorção”[vi], conceito usado para descrever esse tipo de relação parte-todo: adsorção é uma reunião de elementos de uma forma que ambos formam uma coalizão e ainda preservam algo de ímpeto da agência de cada elemento.
Os artistas apresentados são: Roberta Goldfarb, Victor Gonçalves, Marcia Xavier, Thiago Honório, Daniel Moraes, Leda Braga, Nicolás Robbio, Cristiano Lenhardt, Eduarda Rosa, Lina Kim, Thiago Rocha Pitta, Duda Affonso, Jack Mugler, Dárida Rodrigues, Danielle Cracav, Cristiana Nogueira, Maria Laet, Yuli Anastassakis, Carlos Vasconcelos, Liliane Dardot, Gabriela Machado, Lucia Laguna, Rafael Alonso, Gisele Camargo, Marcelo Moscheta, Sandra Birman, Sonia Távora, Judith Cavalcanti, Veridiana Leite, Luiza Baldan, Potira Maia, Natália Loyola, Cinthia Marcelle, Juliana Matsumura, Ana Morgadinho, Diego Castro, Ana Hupe, Marilá Dardot, Lais Myrrha, Álvaro Seixas, Leonora de Barros, Thalita Hamaoui, Fernanda Feher e Cristina Canale.
As linguagens utilizadas pelos artistas são variadas e a curadoria as reúne em uma proposição temática: a palavra, a cidade, a natureza, a cartografia, a jornada, a geometria, a transparência, as afinidades cromáticas e a voltagem política atual. Entretanto o que se mostra mesmo pertinente é a eloquência de uma esperança coletiva. Um ensinamento de “Teko porã”, termo em Guarani que significa, o “belo caminho”, ou o “bem viver”. E este caminho, e este viver, é feito em comunidade. Recordo da imagem da anedota de Francis Alÿs em Cuando la fe mueve montañas. Épico e irradiante. Evento que perpetuou além da ação praticada através de um poderoso engenho: o boca-a-boca. O Mutirão se prolongará em um mecanismo análogo, pois solidariedade é uma virose constante, persistente e perene.
Termino com as últimas frases do trabalho sonoro de Dárida Rodrigues presente na exposição:
“Então você repete.
Quantas vezes seja necessário.
Quantas vezes seja necessário.
Quantas vezes seja necessário.”
Mutirão é a segunda exposição do Clube nowhere e está patente até o dia 15 de Janeiro de 2022 em Lisboa.
Maíra Botelho não escreve ao abrigo da AO90.
[i] A palavra que dá nome a exposição – Mutirão – “vem do tupi motyrõ, e significa trabalho em conjunto para um benefício mútuo, uma mobilização coletiva para lograr um fim, baseando-se na ajuda recíproca gratuitamente.” Texto da curadora Cristina Tejo.
[ii]Nietzsche, Friedrich (2017) The Will to Power. Londres: Penguin Classics. p. 40
[iii] Bacon, Francis. (2011). Lógica da Sensação. Lisboa: Orfeu Negro
[iv] “Uma assemblage deve sua capacidade de agência à vitalidade das materialidades que o constituem. Algo como esta agência congregacional é chamado shi na tradição chinesa. Shi ajuda a ‘iluminar algo que geralmente é difícil de captar no discurso: o tipo de potencial que não se origina na iniciativa humana, mas resulta da própria disposição das coisas. Shi é o estilo, energia, propensão, trajetória ou élan inerente a um arranjo específico de coisas. (…) shi nomeia a força dinâmica que emana de uma configuração espaço-temporal e não de qualquer elemento particular dentro dela.'” Bennet, Jane. (2010) Vibrant Matter – a political ecology of things. Londres: Duke University Press Durham. p.35
[v] https://soa.syr.edu/proj/environmentalcloudatlas/Actant.html Acesso em 7 de Janeiro de 2022
[vi] Bennet, Jane. (2010) Vibrant Matter – a political ecology of things. Londres: Duke University Press Durham. p.35