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Paula Rego, na Galeria 111

Os primeiros desenhos expostos sobre as paredes da galeria datam do princípio da década de 80, do século XX.

No início desta caminhada, pelas salas da exposição de Paula Rego, despontam, sobre nós, imagens coloridas em acrílico, sobre papel branco. Podemos vislumbrar obras como Os Colonos, de 1983; É para ti, de 1983; Histórias de Nova Iorque, de 1984; A menina e o cão, de 1986; Remédio, esta última pertencendo à mesma série da menina e o cão, e ainda a Leiteira, de 1987, em tons “sanguínea”, tornado possível graças à aguada generosa com que a artista cobriu a superfície do papel.

As primeiras imagens em acrílico, transmitentes de pinceladas lineares e vigorosas, contrastam com o cuidadoso jogo de luz sombra presente nas manchas de aguarela desferidas sobre o plano alvo da folha, constantes na obra A Leiteira.

Os desenhos em acrílico surgem de modo cru, e emanam histórias dotadas de um certo obscurantismo, ou ainda, evocam memórias da própria pintora. Colocam o espectador, ser dotado, para José Gil, de “perceção artística”, como o receptor de uma possível realidade em que o fundo do desenho, na sua brancura plana, e clara, potencia uma ideia de autonomia das linhas. Traços trémulos, mas ao mesmo tempo vigorosos, manifestam – pelos nódulos inscritos, pelas hesitações do traço, pelos gestos impetuosos – gravações directas da mente, como se fossem sismógrafos, onde a artista, amiúdas vezes, e de forma corajosa, entra em confronto com as suas memórias.

Palpitam cores vivas nestes contornos, que configuram personagens, a maioria das vezes subtilmente circulares, espiraladas. Prefiguramos relações entre os elementos, ou como diria mais uma vez José Gil, “uma carga de forças”. (A teatralidade dos gestos, nestas obras, relembram sempre a necessidade de superar o texto e a palavra, e atingir o estado imanente e puro, talvez cénico das acções.  Paula Rego não raras vezes é mencionada como uma artista que se enreda também no performativo).

Neste primeiro grupo de trabalhos em acrílico podemos ver/observar um retorno ao figurativo, porém, sem abandonar, na totalidade, os códigos que se aliavam ao abstraccionismo.

Não há muito tempo, nas décadas de 60 e 70, a artista tinha realizado obras que tocavam a pintura-colagem, numa sucessão de imagens “sobrepostas no papel”. Figuravam assim, encobrindo a superfície diáfana da tela, as cores pop psicadélicas dos anos 60, suportadas por improvisações, e assentes no recurso a notícias de jornal, revistas, cantigas infantis, provérbios. Sublimando receios, pesadelos, por meio de desenhos, por si realizados, que recortava depois, e incorporava na tela. O grande impulsionador, indirecto ou não deste fulgor, na obra de Rego, fora Dubuffet, que a artista descobriu e não mais abandonou. Interessava-lhe, sobretudo, o processo bruto, e espontâneo, da arte feita pelas crianças.

Na sala seguinte, esta mais ampla, deparamo-nos, de súbito, e em primeira instância, com a obra Jantar, de 2013. Realizada em pastel sobre papel, observa-se a representação de Teodorico, a personagem principal do livro Relíquia, de Eça de Queiroz.

Na obra Jantar surge representado Teodorico, ora curvado sobre a sua própria vergonha, ao ser descoberto sobre a falsidade da sua relíquia – uma imaculada oferenda, que prometera trazer de Jerusalém, para a sua tia D. Maria do Patrocínio, devota religiosa que iria deixar toda a sua fortuna a Teodorico – ora rezando, dentro do oratório, quiçá, fingindo a sua devoção a Cristo, para não perder a fortuna, que a tia tanto ameaçava retirar-lhe do testamento, caso o sobrinho sucumbisse aos prazeres da carne. Por isso Teodorico tanto rezava no oratório, para enganar a tia, como o fazia, certa vez, com autenticidade, evocando a amada que perdera, e pedindo clementemente, a todos os Santos, que a devolvessem. Vivia uma vida em plena dualidade. Talvez, por isso, a personagem apareça na composição como um duplo na obra ”Jantar”. Por um lado ostentando uma aparência de religiosidade e humildade face a Deus, por outro sendo posto a descoberto, finalmente, da sua volúpia, ao oferendar a tia com um embrulho que, afinal, em vez de conter a relíquia de Jerusalém que tanto prometera, continha uma perfumada camisa de noite, rendilhada, e bem feminina.

O oratório representado por Paula Rego não ostenta a cor verde que é descrita no livro de Eça, porém mantém a fidelidade a muitos dos elementos do livro.

A família de Paula dividia-se entre um pai laico e uma mãe católica. A tradição religiosa manifestava-se no resto da família. O bisavô paterno era pregador e por isso existia em casa um oratório repleto de santos, onde teria também rezado, rodeado por cheiros de incenso. Talvez por isso Paula Rego se tenha identificado com a obra Relíquia. No livro fala-se muito desses odores beatificantes. Até o menino Teodorico, para disfarçar o perfume das suas amantes, se envolvia em incenso, antes de falar com a sua própria tia.

Ainda na mesma série Relíquias, encontramos a obra Sonho, de 2013. Realizada com o recurso ao pastel sobre papel.

Os desenhos, realizados entre 1999 e 2002, como por exemplo a série Anunciação, manifestam uma tensão algo barroquizante. Agravada pela figura feminina austera e despótica, mesmo opressiva, apresentada na obra Controlo, de 1999. A figura da mulher mais velha, aumentada, ocupa de forma grave a área superior do papel, onde é habitual figurar uma atmosfera mais leve na composição. Na parte inferior do desenho, a personagem, mais jovem, mais frágil, confere uma diagonalidade à composição. Exprimindo o desequilíbrio de forças entre as duas personagens, e o comportamento claramente abusivo da personagem que detém mais poder.

As experiências pessoais de Paula Rego poderão estar aqui invocadas, ou exprimir notas autobiográficas intensas de quando a artista, enquanto jovem, recebeu lições particulares de inglês de uma professora que, apesar de eficiente, teria exercido alguma violência física e psicológica sobre pintora, que a artista não mais esqueceu, e sofreu em silêncio.

Os medos, o terror, são o leit motiv da artista. Tratados, muitas vezes, independentemente da forma, por meio de colagens inusitadas, de génese surrealista, tomando partido dos contrastes, ou repetições, outras vezes por meio do desenho mais académico, entre o puro e o sujo, o bem e o mal, o poder e a submissão, como modo de expiação. Recortes de dores que pretenderia escamotear. “Pinto para dar uma face ao medo”, dizia-nos.

Até 15 de janeiro, na Galeria 111.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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