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Anozero’ 21-22 – Bienal de arte contemporânea de Coimbra – Meia-Noite Parte 1

Em Coimbra, a escuridão envolve e domina a Sala da Cidade, mergulhando-nos numa experiência performativa, intimista e imersiva. Ao entrarmos no espaço, uma sensação de acolhimento abraça-nos e intriga-nos, potenciada pela penumbra e cadência de luzes. A cenografia do antigo refeitório do Mosteiro de Santa Cruz, coberto por uma abóboda polinervada estrelada de quatro tramos, e a arte azulejar que percorre as grandiosas paredes brancas, transportam-nos para um outro tempo, em que as altas janelas cobertas impedindo a entrada de luz, sublinham o ambiente de austeridade monesterial de outrora. Como numa peça de teatro em que a luzes descem, dando início ao espetáculo, somos convidados a apreciar e a participar da mise en scène: no centro do espetáculo, coberta pela abóboda, a instalação de Carlos Bunga, Descolonizar o Pensamento, grandiosa e poética, estende-se pelo espaço da sala impelindo-nos ao seu encontro. Numerosas caixas de cartão de cor parda, como que se multiplicam infinitamente pelo chão, dando-nos a ilusão ótica de atravessarem toda a Sala da Cidade, ocupando-a como uma paisagem dominada pela monumentalidade e horizontalidade. Metodicamente organizadas, criando no seu conjunto uma forma retangular baixa, as caixas de cartão abertas convidam-nos a espreitar o seu interior, ao mesmo tempo que aludem para conceitos de arquitetura modular e ideia modernista de grelha. Espaço volátil, que se situa entre a arquitetura e a escultura, a instalação efémera site specific que Carlos Bunga concebeu para Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra[1] funde-se com o espaço arquitetónico que a recebe, não obstante o contraste e simplicidade dos materiais utilizados – fita adesiva e cartão canelado – através dos quais explora questões políticas e sociais, conceitos de fragilidade, temporalidade, demografia e emigração. Peça de chão minimal, à volta da qual somos convidados a circular, a obra interpela-nos através da subtileza silenciosa do cartão e do rigor geométrico em que noções de transitoriedade e permanência se entrecruzam. A dimensão poética e conceptual do artista assume, em Descolonizar o Pensamento, um cariz autobiográfico, ao integrar na instalação dez esculturas angolanas dos séculos XIX e XX pertencentes à coleção do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Destaquemos este gesto de inclusão por parte do artista, através do qual Carlos Bunga materializa e dá continuidade à pesquisa estética e ético-política que tem vindo a desenvolver, abordando de modo explícito a sua ascendência africana. Dispostas de forma cuidada em pontos estratégicos da instalação, as esculturas assumem lugares de destaque, que a iluminação e o plano mais elevado em que se encontram ajudam a reforçar. Erguendo-se da estrutura arquitetónica efémera, as esculturas assomam-se como memórias coloniais e símbolos identitários angolanos que devem ser protegidos e preservados, “que aqui surgem como um desejo de reescrever e descolonizar a história, o presente e especialmente o pensamento”[2]. Incorporando a instalação, um ecrã ergue-se sobre a mesma, transformando-a temporariamente numa sala de projeção e de conversas, onde se exibem quatro filmes[3] que lançam as linhas de pensamento e temáticas da edição do ano zero da bienal: La Cabeza Mató a Todos, de Beatriz Santiago Muñoz; Les Mains Négatives, de Marguerite Duras; À Bissau, Le Carnaval, de Sarah Maldoror; e Shadow-Machine, de Elise Florenty & Marcel Turkowsky. Há uma organização espacial conseguida por Carlos Bunga nesta sua instalação, cuja presença unifica e dialoga com as peças de diferentes tipologias que a compõe e com o espaço envolvente. De referir que o próprio ecrã, exibe os filmes de ambos os lados, verso e reverso, permitindo aos espectadores visualizá-los à medida que contornam a instalação.

No dia de abertura da bienal é o filme Les Mains negatives, de Duras, que se exibe, cujo título é uma referência direta ao próprio texto narrada pela voz misteriosa e profunda da autora, que evoca um outro tempo e espaço, o das impressões digitais negativas em cavernas pré-históricas, pinturas rupestres de contorno das mãos, traço ligado à individualidade. A imagem do filme é composta por uma série de longas e fluidas viagens por uma Paris despovoada e modesta na opacidade da noite, que quando encontra o azul do amanhecer revela a sujidade das ruas, onde trabalhadores anónimos são os únicos atores urbanos, a quem Marguerite Duras diz: “tu que tens um nome e uma identidade. Eu amo-te”. É também para estes anónimos atores urbanos que habitam a noite que a Bienal Anozero se destina, uma bienal que segundo Carlos Antunes, seu diretor, será de “enquadramento dos mais frágeis, da possível distinção de poderes pela qual valerá sempre a pena lutar”. Uma bienal que se divide em duas partes[4] e que num primeiro momento – intitulado Meia-Noite. Parte 1– se assume como uma exposição-conversa, convocando a cidade de Coimbra e o país à participação e discussão sobre diversidade, igualdade, justiça social, produção de conhecimento relações poéticas entre espécies e seres. Temas e territórios que estarão presentes no segundo momento da bienal em Abril, Meia-Noite. Parte 2, e sobre os quais somos agora convocados a pensar, discutir e questionar. Com o título de Meia-Noite, a programação da Bienal Anozero’21-22, pela primeira vez assumida por duas curadoras, Elfi Turpin e Filipa Oliveira, propõe questionar e pensar a noite, evocando-a como lugar de fluidez, espaço de poesia e de resistência ao pensamento normativo. Pensar a noite como criadora de conhecimento que dilui as margens e convida a outras leituras do mundo, espaço de quebra de normas, lugar aberto a outras possibilidades de visão, de conhecimento, de interação, aberto a outros corpos. Esta noite em que todos os gatos são pardos, em que não nos conseguimos distinguir uns dos outros, embora preservemos a nossa individualidade.

Numa convocação da própria noite, que oculta e revela, a primeira exposição in situ da UmbigoLAB, No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou[5], materializa-se como resposta dos alunos de mestrado em Estudos Curatoriais do Colégio das Artes de Coimbra, ao desafio das curadoras “para explorar conceitos como depois do patriarcado, relações simbióticas e epistemologias alternativas”[6]. Ao longo da exposição, numa alusão ao sol e à lua, somos conduzidos pela ausência e reflexo de luz e pela presença constante do círculo enquanto signo associado à eternidade e ao divino. Numa referência direta à Caverna de Platão, visionamos o documentário Aventure de l’homme de la Prehistoire: Apparition de la religion, origin d l’art. Imersos na escuridão, somos confrontados com a nossa ancestralidade, observamos as pinturas das grutas de Lascaux, questionamos os signos e as suas origens. Da gruta, onde a arte é descoberta pela primeira vez, seguimos em direção à luz que cria silhuetas e a partir daí o desenho, a luz na caverna que cria o início da História da Arte. Num segundo momento da exposição deixamo-nos arrebatar pelo som e imagem visual da performance Ruptura, de Hector Zamora, cujo contraste entre o branco/preto nos remete para a dualidade dia/noite; luz/escuridão, à medida que assistimos a uma chuva poética de folhas negras arrancadas a livros, cujo som nos acompanha e permanece, num gesto simultaneamente catártico e libertador que pode também ser entendido como de insatisfação e opressão. Em aparente diálogo com a instalação de Héctor Zamora, como se as folhas arrancadas dos livros tivessem sido por nós recolhidas e devolvidas à sua origem, a máquina, surge-nos a instalação simples e silenciosa de Marilá Dardot, Com palavras de palavras por palavras, palabras. Composta por uma mesa e uma máquina de escrever, como que nos convidando à escrita e à leitura, o papel que sai da máquina de escrever, percorre e ultrapassa o espaço, circulando pelo chão e terminando numa bobina imensa – o signo círculo, símbolo do tempo. Os objetos que compõem a instalação, aparentemente estáticos, revelam-se-nos ideias em desdobramento, cri(ação) em movimento, a partir dos quais discutimos o caráter transitório da linguagem. A ligação entre a arte e a escrita volta a estar presente nas obras de Zé Ardisson, Acordai Acordai Acordai e na fronha da almofada em que borda a palavra viagem, como que nos conduzindo à experiência onírica proporcionada por Depois do ressoar de um búzio, de Pedro Pedrosa da Fonseca. Suspensa por um fio ao nível do olhar – contendo qualidades que permitem identificar um movimento implícito, uma impermanência – deixamo-nos seduzir pela dança hipnótica da lupa e dos seus reflexos circulares e espiralados projetados na parede, como que evocando uma trajetória de evolução e uma ,relação com o simbolismo cósmico da lua, o simbolismo aquático da concha, representando os ritmos repetidos da vida, o carácter cíclico da evolução, a permanência do ser sob fugacidade do movimento, conceitos e ideias que nos conduzem à obra gráfica de Alberto Carneiro. Às obras mencionadas acrescem-se Oscillation of the Unknown, de Clara Imbert cuja tridimensionalidade e arquitetura da escultura pendular, permitem o diálogo com a opacidade contrastante dos mármores brancos de Sideral Map, e Noite branca, de Margarida Alves, esculturas circulares que nos remetem para um universo entre a cosmologia e cosmogonia. Destaquemos ainda Dupla, [série Resgate] de Rita Gaspar Vieira e a convocação de um outro espaço, o do seu próprio atelier para o CAPC, em que as marcas do chão tingidas a negro sobre o pano de algodão, as métricas e as tonalidades, recordam-nos os jogos de luz e sombra das polaroids Tears e Love, de Bárbara Bolhão.

Afirmando-se como uma mostra eclética, reunindo num mesmo espaço uma pluralidade de vozes e de médiuns, No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou assume-se “não como um mero exercício de Chiaroscuro, mas como uma exposição que nasce dos opostos”[7] em que o círculo ganha o sentido de ciclo interminável de criação como n’As Ruínas Circulares de Jorge Luis Borges. E como num sonho, numa narrativa elíptica recordamos as ruínas que inspiram Carlos Bunga e lembramo-nos de Descolonizar o Pensamento.

Meia-NoiteParte 1 até 15 de janeiro de 2022, e Meia-Noite. Parte 2 entre 9 de abril e 26 de junho de 2022.

 

[1] Organizada desde 2015 pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), a Câmara Municipal de Coimbra e a Universidade de Coimbra.

[2] Excerto da folha de sala da exposição, Meia-Noite parte 1.

[3] Às quintas-feiras, entre 2 de dezembro e 13 de janeiro, às 18 h, estarão sempre presentes convidados para discutir com o público o filme do dia.

[4] Meia-NoiteParte 1, de 27 de novembro de 2021 a 15 de janeiro de 2022, e Meia-Noite. Parte 2, em curso entre 9 de abril e 26 de junho de 2022.

[5] Patente no Círculo Sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) até 25 de janeiro de 2022, a exposição integra-se no âmbito da Programação Convergente da bienal.

[6] Excerto da folha de sala da exposição, No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou, 2021.

[7] Excerto da folha de sala da exposição, No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou, 2021.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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