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No feixe de luz por baixo da porta – Fernão Cruz na Gulbenkian

Morder o pó é o bonito título escolhido por Fernão Cruz para a sua exposição individual que acontece por estes dias na Gulbenkian. Trata-se da tradução direta de uma expressão idiomática inglesa que significa cair com estrondo, morrer ou fracassar irreversivelmente. Falaremos disso mais adiante, mas ainda no campo das palavras e das imagens que elas criam, Morder o Pó, em português, uma vez que não tem a mesma conotação anglófona, projeta-se visualmente. Imaginei um feixe de luz rompendo a escuridão, povoado por milhões de partículas dançantes, abocanhado em raiva e desespero. Um gesto tão inconsequente como desolador, à imagem de tudo aquilo nos escapa durante uma vida inteira. Morder o Pó talvez seja o que passamos o tempo a fazer, antes de nos transformarmos também em partículas dançantes.

Brevidade, morte e (obviamente) medo atravessam as salas da Gulbenkian. O artista apresenta um puzzle saturado de símbolos, imagens e objetos que nos requerem tanto que as divisões, sobretudo a primeira, se apertam e nos espremem. Quem tem acompanhado o seu percurso, como no meu caso desde os tempos dos ateliers da FBAUL, entenderá que os trabalhos agora apresentados são apenas uma ínfima parte da intensa produção de Fernão Cruz. Todos eles são pó mordido. São resultado da tentativa de devorar o mundo num apetite sôfrego, digerido pelas mãos.

A exposição é constituída por dois momentos e uma passagem. O primeiro é composto por um largo conjunto de telas de grandes dimensões onde sobressaem fendas, buracos e estilhaços. Nelas a figura humana (quando presente) é reduzida a fragmento ou signo. Um olho num buraco; uma silhueta que não quer ser pintura; um corpo cai retumbante num palco com cortinas vermelhas pesadas – ah, quando de Chirico quis ser romântico! As telas de Fernão Cruz são tomadas por texturas, muita tinta, grafismos, símbolos e cores que explodem em simultâneo perante o olhar incapaz de tamanha assimilação. O voyeurismo talvez seja tanto a doença como a cura, a origem e a consequência do ímpeto voraz que transparecem é remanescente do arrebatamento que levou à sua criação. Daí, que transmitam também elas impulsos ou medos: cair, morrer, morrerem os outros e ficarmos nós.

A passagem abre-se por trás de uma parede de tijoleira esburacada onde vagueia a serpente. A transição é feita quase às escuras até à segunda sala, onde nos deparamos com um grupo de esculturas num ambiente declaradamente mais cenográfico. O corte do óleo para o bronze, da claridade para a escuridão, faz-se sentir como uma travagem abrupta que nos impele a ver de um modo diferente. Aqui somos seduzidos a debruçar-nos, maravilhados, sobre as relíquias de cartão. Este conjunto de bronzes surge como um in memoriam de ideias – no seguimento de Flying Tombstones que o artista apresentou na ARCO Madrid em 2020. São pequenas construções fúnebres que petrificam ideias, as tais partículas de pó que dançam livres, aos milhões, à boleia dos feixes de luz que se acendem debaixo das portas.

Veio-me à memória uma visita ao atelier do artista. Entre tinta e conversas, Fernão Cruz mostrava-me, empolgado, um guarda-chuva. Tinha-o revestido a cola ou goma para que ficasse um pouco mais sólido. Contudo, apressadamente me disse ser incapaz de manter o dito objeto nesse estado. Queria passá-lo a bronze para que ficasse imóvel, para que guardasse a exata configuração que o fascinara. O pavor da efemeridade é sintomático do medo do desaparecimento, e é combatido pela necessidade de criar/preservar. Sabemo-lo desde as histórias de Plínio sobre a origem do desenho. Este nada que nos resta é, contudo, um superpoder capaz de contrariar a natureza, mesmo que por breves instantes.

Até 17 de janeiro de 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian.

Francisco Correia (n. 1996) vive e trabalha em Lisboa. Estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e concluiu a Pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem escrito para e sobre exposições. Simultaneamente desenvolve o seu projeto artístico.

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