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A Cidade Incompleta, de Fernanda Fragateiro

Em Espaço Comum – A Cidade como Obra Coletiva, Stavros Stavrides estabelece as cidades como espaços geradores de “comunalidades”, isto é, espaços capazes de tornar comum tudo o que é inerente à cidade. Esta capacidade de comunalizar – de tornar comum – pressupõe uma partilha diária de culturas, conhecimentos e recursos, uma predisposição para a ampliação e autogestão das comunidades e, acima de tudo, pressupõe a criação e reprodução de tudo aquilo que se considera comum. Espaço Comum é, portanto, uma reflexão sobre o ativismo do lugar público, comunitário e social, culturalmente poroso, escrito com Atenas como pano de fundo – uma capital que virou símbolo de resistência, resiliência e combatividade face às mudanças que o capitalismo global e o neoliberalismo têm vindo a incutir nas grande cidades e capitais europeias, homogeneizando vivências, experiências, lugares e espaços, reconfigurando as praças não como lugares de partilha e debate (as velhas ágoras da res publica), mas como pontos de interesse epidérmicos e de consumo.

A Cidade Incompleta, de Fernanda Fragateiro, é um ensaio psicogeográfico, peripatético, urbanístico e artístico sobre a realidade complexa e poliédrica das cidades, da sua inesgotável energia e da capacidade transformadora que possuem, e, neste contexto, é uma exposição que encontra ecos na obra de Stavrides.

De facto, a cidade será sempre incompleta, como elucida o poeta Herberto Helder, citado por Delfim Sardo no texto que abre a exposição. A sua história será sempre reescrita ao longo dos tempos, consoante as camadas que se vão sobrepondo e raspando nesse enorme e espesso palimpsesto. Mas será tanto menos incompleta quanto mais democrática for, quanto mais espaços comuns tiver, quanto mais deixar pulsar de vida todos os corpos que a habitam. É incompleta porque é um universo e, como tal, será um fenómeno ou um objeto infinito e indeterminável. Não porque se esgotaram os mecanismos que a fazem ser viva no quotidiano, ou porque a sua construção foi interrompida por falência volitiva. A cidade é incompleta porque é algo – um ato, uma vivência – contínuo.

A linguagem que Fragateiro usa é em tudo diferente da dos autores já mencionados, mas o efeito é o mesmo na medida em que é sobre a cidade que a artista pensa. Pensar cidade não é privilégio apenas dos arquitetos ou urbanistas. Todos têm a capacidade de refletir criticamente sobre a cidade que sorve e absorve; que cria e destrói; que constrói identidades; que gera urbanidades, culturas, subculturas; que afasta e aproxima; que é estrutura orgânica e inorgânica, feita de compósitos estéreis e naturais; que é contentor e libertador de forças; palco de manifestações, arena de lutas e combates, parlamento aberto para os problemas sociais, económicos e políticos das comunidades. Porque as cidades são a primeira expressão das crises, e torna-se importante voltar do avesso a pirâmide hierárquica das cidades e do pensamento que se faz em torno dela; dar voz, como Fragateiro faz, aos marginalizados, às periferias, aos que foram escorraçados para fora da cidade e que agora veem os seus edifícios demolidos e as suas memórias eclipsadas; fazer vibrar, como Fragateiro sugere, as reminiscências das alvenarias demolidas, dos azulejos retirados às fachadas, das pedras que pedem toque e afago.

A exposição que Fragateiro desenha em A Cidade Incompleta é uma longa promenade por uma cidade fragmentada que o visitante constrói criticamente na sua imaginação: veste a farda de trabalho da primeira sala; indaga sobre um muro em construção ou demolição; contempla a literatura sobre urbanismo, sociologia da arquitetura e feminismo, que informa a própria exposição; reflete sobre as estruturas e infraestruturas dos bairros sociais, da génese das identidades urbanas que viram subculturas e depois culturas; ausculta a coexistência entre o natural e o edificado.

O uso do livro tem sido particularmente importante na obra da artista – não apenas como objeto simbólico de uma produção intelectual, mas como suporte de toda uma construção e de um pensamento crítico sobre o espaço social. É o livro que se apoia em andaimes, serve de encosto a postes de aço, faz de colher de argamassa e compõe todo um ambiente ou ambiência cultural, mas também pictórica e abstrata. É o livro que desconstrói os tempos das cidades, os movimentos que a animaram e lhe deram forma, da antiguidade à modernidade, do classicismo ao modernismo. São os livros que preparam os novos tempos, as novas morfologias por vir. São eles que clarificam os movimentos dos tais corpos na cidade, dos fluxos vivos, dos objetos e hiperobjetos – são eles, enfim, que dão palavra ao “laboratório de materiais” e de matérias que é a cidade.

A Cidade Incompleta pode ser vista no MACE, em Elvas, até 16 de janeiro de 2022, e conta com a curadoria de Delfim Sardo.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo.

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