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Entrevista com Francisco Trêpa, autor da capa do mês da Umbigo

A propósito da nova capa do mês da edição online da Umbigo, Miguel Pinto entrevista Francisco Trêpa (Lisboa, 1995) acerca do seu trabalho e do conceito por detrás de The elephant got in the room and never left, que esteve em exposição no espaço de residências artísticas Duplex AIR.

Miguel PintoThe elephant got in the room and never left é o título da tua passada exposição que dá agora capa à nova edição online da Umbigo. Podes falar-me um pouco sobre este conjunto de trabalhos? Qual é, para ti, o “elefante na sala” desta exposição?

Francisco Trêpa – Durante o confinamento de 2021, passei três meses a pintar diariamente e fiz uma série de pinturas que nos mostram espaços do Zoo de Lisboa. Uma dessas pinturas foi executada a partir de uma fotografia que mostra uma criança a dar uma moeda a um elefante, neste caso o “famoso” elefante do sino do Zoo de Lisboa. Quando recebi o convite da Susana Rocha, diretora artística da Duplex AIR, ainda sem saber o que seria a exposição, olhei para a pintura do elefante e vi nela o potencial de expandir aquela cena, aquela prática, aquela memória coletiva, num conjunto de trabalhos. Foi deste modo que surgiu a intenção de trazer a história deste elefante para a sala de exposição, sendo este um conjunto de trabalhos muito interdependente dos sentidos e relações que estes objectos criam entre eles mesmos. Neste sentido, comecei a recriar alguns dos elementos fundamentais deste espetáculo cruel, como a tromba, o sino, a moeda e o amendoim, atribuindo a cada objecto um “guião” dentro desta “atuação”. Um amendoim é apenas um amendoim, mas estes amendoins, no Zoo, deixavam de ser apenas o que são por si, para serem o isco que levou este elefante a tocar um sino durante 20 anos e o que permitiu ao Zoo de Lisboa fazer este “espetáculo” que atraía muitos visitantes. Está claro que se não se desse uma moeda, em primeiro lugar, ao elefante, o guarda não lhe dava o amendoim e por consequência não se ouvia o “trelim… trelim…” do sino.

Agora respondendo à tua segunda questão, não sei quantos “elefantes na sala” passaram por esta sala, talvez os que eu vi não foram os mesmo que outras pessoas viram, mas certamente pelo menos um elefante invisível eu tentei que estivesse na sala de exposição, ao fazer The only way is through e The elephant in between, duas esculturas com as medidas médias de um elefante. Posso dizer que na galeria da Duplex AIR, o elefante, mal caberia na sala de exposição. Mas sem dúvida que, para mim, o maior “elefante na sala” que estava nesta sala é a própria referência ao Zoo e ao sistema que estrutura a exposição de animais vivos. Estes lugares não só têm elefantes reais, como são em si “elefantes nas salas”, nas cidades e nas sociedades, passam por projetos educativos, mas revelam um grande problema mundial que todos veem, porém muitos não querem notar na falta de sentido em ter animais selvagens, como elefantes, em cidades.

MP – Uma das características mais flagrantes da tua produção artística é a importância que dás aos alimentos, não só enquanto materiais que constituem parte das obras, mas também enquanto referentes, portadores de um sentido – como foi o caso desta exposição. Porque é que este universo desempenha um papel tão presente nos teus trabalhos?

FT – Exato, no caso desta exposição o alimento que representei, o amendoim, “entrou em cena” para ser portador de um sentido específico, o sentido do alimento enquanto isco, o alimento – armadilha. Foi nos amendoins e não na moeda, ou no sino, ou no guarda ou, muito menos, no público, que este elefante ficou viciado. Ele foi viciado nos amendoins, tanto que quando o Zoo acabou com este espetáculo, o elefante, durante seis meses, não saía do local onde diariamente lhe davam a sua dose de amendoins. Neste sentido, podemos pensar na alimentação como a base para a domesticação dos animais. Um alimento pode ser a atração para a armadilha perfeita.

No meu trabalho os alimentos foram surgindo. Já trabalhei com alimentos reais, como por exemplo no vídeo Who’s Watching?, no qual utilizo alpista (alimento de pássaro) para manipular a ação, atraindo assim aves para o frame do vídeo. Trabalhei também, com ração de animais e cereais processados, fazendo uma ponte entre os dois productos alimentares industriais e as suas várias semelhanças. Nos processos industriais existe uma rigorosa selecção da forma estabelecida como “perfeita”, uma triagem que põe de fora do processo de venda muitas formas que não cabem no padrão extipulado pela indústria. Certo dia, em que ia cozinhar uma omelete, quando abri a caixa dos ovos, vi pela primeira vez um ovo enrugado. Percebi depois que é algo relativamente comum, mas para quem só vê os ovos que vêm do supermercado é algo raro, pois é uma falha no processo de triagem que retira os ovos imperfeitos de circulação. Foi assim que o ovo entrou num conjunto de trabalhos, onde utilizo sempre o mesmo ovo enrugado e que por consequência foram entrando outros ovos (avestruz) e vegetais como as beringelas (eggplant), os amendoins, etc. Interesso-me assim pela ideia de reprodução da mesma forma e na criação de um outro corpo com o mesmo corpo, tal como acontece com as esculturas feitas com ovos e beringelas de cerâmica em pilha, que tenho apresentado em algumas exposições em que participei, incluindo a exposição, Le Salon des Aubergines, no Museu Bordalo. Existe algo que me fascina num pedaço de argila que ganha a forma de um ovo e passa a atuar, ainda que não sendo, como ovo. Nós sabemos o som que uma colher faz ao tocar o vidro, ou a madeira e isso fascina-me na escultura, quando fazemos objectos que podem parecer tão distantes, mas que na verdade, olhando bem para as suas constituições matéricas estão tão próximos de nós. Com os alimentos podemos ainda falar de uma relação exterior – interior, pois eles viajam no nosso corpo, entram, saem, são absorvidos… Não tenho qualquer razão para o porquê de ter começado a trabalhar com alimentos e representações de alimentos, mas posso dizer-te que gosto e vou continuar.

MP – A referência ao elefante, um animal que remete a uma pluralidade de diversos contextos, principalmente a um contexto colonial onde era visto como uma atração – sentido que perpassou para a sua presença em jardins zoológicos ou circos ainda hoje – parece-me uma preocupação deste trabalho. No texto de Beatriz Coelho que agora resulta como memória descritiva da exposição, refere-se que o mote para estas obras foi, inclusivamente, um espetáculo realizado no Zoo de Lisboa nos anos 80 e 90, onde o elefante era usado nesta lógica de curiosidade e divertimento. Como é que esta temática da exploração animal, em particular do elefante, surgiu e teve ressonância em ti?

FT – O Zoo foi um local que visitei muito quando era criança e que, de certa forma, me moldou. Até certo tempo, acreditei no paradigma contemporâneo da instituição zoológica, a conservação de espécies em vias de extinção. No entanto, apesar do fascínio pessoal em, meramente, observar um animal preso no meio de Lisboa, havia algo profundamente perturbador e violento em todo o costume de ir ao Zoo. Como tantas outras estruturas sociais, que constroem o nosso modo de pensar, esta teve de ser desconstruída após uma fase de negação. O tema da minha dissertação de Mestrado é a exibição de animais vivos em contexto expositivo, seja ela no Zoo ou no Museu. Assim, tive um período de pesquisa sobre este tema em que, naturalmente, o que fazia no estúdio se debruçou muito sobre o que pensava e o que pesquisava. Esta exposição surge como uma extensão dessa pesquisa a uma história local, que eu mesmo presenciei e que faz parte de uma memória coletiva. A maior parte das pessoas portuguesas que passaram na exposição guardavam qualquer memória com este elefante. Esta era uma prática evidente, que envolvia uma troca monetária, de exploração de um animal, num local que apela pela salvação das espécies. A União Europeia, emitiu, no final dos anos 90, novas diretrizes que estabeleceram nova legislação para os parques zoológicos, acabando assim com algumas práticas que envolviam uma grande proximidade entre animal e espectador, uma maior “naturalidade” nos habitats recriados, entre muitas outras regras para tornarem o Zoo num lugar aparentemente mais “paradisíaco” e “justo”. No entanto, continuam a existir espetáculos com golfinhos em 2021.

No caso desta exposição, o elefante surge, como referi anteriormente, de uma fotografia, que virou pintura, que virou ideia, que virou exposição. O que o elefante significa na cultura portuguesa e lisboeta? Claramente o seu passado e presente colonial. O zoo surge com a colonização europeia, com o propósito de trazer as ex-colónias para as cidades colonizadoras e mostrar ao seu público animais selvagens considerados exóticos e por vezes “pessoas consideradas exóticas”. O Zoo de hoje continua, inevitavelmente, a propagar a ideia de colonização, através dos animais enjaulados e dos seus habitats recriados.  Não é por acaso que o Zoo de Lisboa utiliza a imagem do elefante num outdoor publicitário, perto da Praça de Espanha, que tem como título: “África aqui ao lado”. Onde? Em Sete Rios? É um cartaz bastante infeliz e que parece que não foi mesmo pensado tendo em conta o que Portugal e o seu passado colonial significam para o mundo, que revela algo que está tão profundamente enraizado na minha (nossa) cultura. No séc XV, D. Manuel mandou construir a Elefantaria Real no Rossio (onde hoje é o Teatro D. Maria II em Lisboa) e existem relatos escritos que contam que o Rei descia do Castelo de S. Jorge para a cidade de elefante. O zoo de Lisboa tem mais de cem anos, e por lá passaram muitos milhões de visitantes, sempre observando elefantes. Os séculos passam, os tempos mudam, mas os elefantes continuam em Lisboa.

MP – Pegando mais uma vez no motivo do elefante, algo que me parece notável no teu trabalho é a forma como passas do real ou simbólico – por exemplo, as referências diretas ao animal são, para além do título da exposição, as peças que elaboraste em porcelana, representando apenas a sua tromba. É de notar também a escultura The only way is through, onde jogas com a ideia dos amendoins que eram dados ao animal, mas que são aqui construídos de parafina e dispostos como que uma cortina. Consideras que esta transformação do concreto em figurativo seja parte fundamental do teu processo criativo?

FT – Considero fundamental. É essa transformação que me permite criar objectos intencionalmente figurativos, não diria apenas do concreto em figurativo, mas de algo em algo, algo que às vezes nem sei bem o que é. Depois, o que surge de tantos processos cruzados podem ser transformações da matéria que eu quis que vivesse de certa forma, de certa história. Eu comprei uma máscara de elefante de silicone para fazer um trabalho que nunca fiz. Quando resolvi pegar nesta história para a exposição, lembrei-me que tinha a tal máscara e pensei como aquela tromba estava perfeitamente adaptada ao meu tamanho humano, e que em vez de ter dois metros, tinha quarenta centímetros. Isto levou-me a reflectir nesta redução da escala da tromba e a fazer um paralelo com a redução da escala do território do elefante para um habitat recriado num Zoo. Esta exposição foi um jogo de relações num minimundo que fui criando enquanto produzia as obras para o espaço. Quis tirar um molde a um amendoim e tirei o seu positivo em parafina, depois comecei a reproduzir exaustivamente esse amendoim para conseguir fazer uma “cortina de afastar moscas de amendoins” com a altura de um elefante. Acabei por tirar dos moldes mil e setecentos amendoins de parafina.

MP – Na apreensão das tuas obras, algo que me fascina imenso é o sentido de contenção que empregas aos objetos, e que apesar de minimais, parecem conscientes de todas os sentidos possíveis que possam reter. Esta construção de leituras é, para ti, mais conceptual, uma preocupação que é parte fundamental da criação das próprias obras, ou é algo mais espontâneo, que vais testemunhando conforme as elaboras?

FT – Penso que é de ambas as formas e que de muitas outras. Fazer é muito importante para mim, para o meu processo. Uma professora do curso de escultura em Belas Artes dizia-me que eu criava muito partir do estômago e que essa parte eu já a tinha, mas que me faltava utilizar mais o cérebro, numa altura em que eu de facto “vomitava” livremente os objectos. Foi uma observação muito importante para mim. Ora, penso que estômago e cérebro possam estar em paralelo para o que referes como conceptual e espontâneo, e nesse sentido, eu preciso muito dos dois para criar, mas também das mãos, dos olhos… É algo muito complexo que eu tento fazer da forma mais simples, quando consigo.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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