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O Susto é um Mundo, de Vera Mantero

O Susto é um Mundo é a nova criação da coreógrafa e bailarina Vera Mantero. Este espetáculo estreou no passado mês de novembro na Culturgest durante o Festival Alkantara. A direção artística é de Vera Mantero, a cocriação de Henrique Furtado Vieira, a interpretação de Vera Mantero, Henrique Furtado Vieira, João Bento, Paulo Quedas e Teresa Silva. O desenho de luz é de Leticia Skrycky, a criação sonora de João Bento, a cenografia de João Ferro Martins, o figurino de Marisa Escaleira e a assistência de Vera Santos. A pesquisa do processo de trabalho contou com a participação de Vânia Rovisco e o texto é da autoria de Henrique Furtado Vieira, Paulo Quedas, Teresa Silva e Vera Mantero. A tradução e legendagem é de Joana Frazão.

A qualidade plástica do figurino e da cenografia desta peça coloca-nos num lugar de futuro. Esse lugar pertence a uma atmosfera futurista que representa um tempo por vir. Isto não passa pela robotização do humano nem por uma estética Matrix que facilmente ilustra o nosso imaginário clássico do que poderá ser o futuro, pelo contrário: todas aquelas presenças têm uma qualidade muito humana. Os objetos em cena ilustram esta ideia de futuro. A maior parte dos objetos em cena é movimentado pelos intérpretes, deslocado de um lado para o outro, redignificado pelo gesto. A interação dos corpos em cena com os objetos cria imagens que vão desenhando uma constelação de futuro, um espaço lunar. Estes objetos ganham novas leituras, como é exemplo o escadote. O escadote em palco não vai a lugar nenhum, compre a sua função de fazer subir sem ser utilitário: quem sobe aquele escadote não o faz na expectativa de depois realizar uma outra ação. A plasticidade do cenário traz consigo um imaginário surrealista. O surrealismo foi um movimento artístico que se preocupou em representar outros estados de consciência. Estes estados de consciência não eram abstração, mas sim outros sentidos e significados, precisamente o que (a meu ver) esta performance procura fazer.

O Susto é um Mundo vai em busca da contradição e da multiplicidade. A contradição e a multiplicidade pouco espaço têm no modo como nos dizem que é suposto viver, pensar ou agir. A procura de outros sentidos e significados passa por demonstrar que a contradição e a multiplicidade fazem parte da maneira como vivemos, pensamos e agimos. Uma educação para a cidadania será uma educação para a Multiplicidade e para a Contradição? É o manifesto-pergunta deste espetáculo. As particularidades da linguagem desta performance entram em diálogo com a qualidade surrealista já mencionada. Não se trata de uma escrita automática ou de um cadáver esquisito, simplesmente apresenta uma lógica de sentido diferente. Esta lógica de sentido é um pouco confusa. Não são claras muitas das coisas que são ditas, no entanto, encontramos uma qualquer coerência no modo como são ditas e no eco que reverbera no espaço e nos intérpretes. Muitas palavras inventadas são parte do discurso, invenções que partem da sua fonética: as palavras que se inventam são sons que nascem um depois do outro numa qualquer melodia harmónica. Estas palavras rimam. São usados trocadilhos e trava línguas. Não será arriscado afirmar que estes textos são delírios pessoais, fantasias e lugares imaginários entre a ficção e realidade. O discurso deste texto é narrado na primeira pessoa. Trata-se de um discurso que se preocupa com a sequência das ações e em estabelecer uma continuidade. Não estamos no lugar da mais pura abstração, estamos no lugar onde a crua descrição verídica sobre coisas se cruza sem sentido lógico com outras coisas, deixando-nos num lugar de dúvida, interrogação.

O fascismo, o fanatismo e o ecocídio são os temas desta performance. Estes temas atravessam direta ou indiretamente os textos de cada intérprete e são porventura a maior ameaça ao nosso planeta (por consequência, a nós). Outro elemento comum em todos os textos é a dicotomia entre tu e eu: um surge como resposta ou complemento do outro. Este outro está ausente ou omnipresente. Estes textos parecem-me ser um comentário e uma reflexão sobre os temas aqui mencionados. Uma reflexão pessoal, íntima, ao passo que o comentário é mais geral e sarcástico, mais político se quisermos. O texto termina com uma profecia e com aquilo que parece uma despedida: Preparação da máquina-corpo. Obrigado. Desculpa. Perdoo-te. Amo-te. Os corpos em cena aproximam-se muitas vezes desta imagem de máquina-corpo. Há um paradoxo que está quase sempre presente ao longo da peça entre discurso e corporalidade. O discurso apela ao ser, ao sentir, ao pensar, ao passo que a corporalidade muitas vezes apela à máquina, a movimentos mecânicos e frenéticos. São vários os momentos da performance onde os corpos se juntam com o objetivo de sugerir uma só imagem, ou seja, os corpos são parte e fazedores de um todo. O momento da performance onde os corpos dos intérpretes entram em relação com uma pequena planta e uma luz amarela é exemplo disto. Com a sala às escuras, os corpos entrelaçam-se e confundem-se num só corpo: tornam-se líquidos. Mesmo quando os corpos não estão em relação direta uns com os outros, estão em relação indireta entre si. Poucos são os momentos na peça onde não estão todos os intérpretes em cena, ou seja, mesmo quando a ação se concentra num corpo, todos os outros estão em cena vivendo as suas vidas, havendo uma relação constante entre si. A corporalidade neste espetáculo parece-me sublinhar este aspeto: que não se é corpo sozinho, e que para enfrentar condições adversas, precisamos de estar juntes.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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