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Eles passarão, Tu passarinho – Uma história política das aves, de Andreia Farinha

A companhia de teatro e performance Truta no Buraco estreou a sua mais recente criação no passado dia 24 de novembro no Damas – Bar e Sala de Concertos. Truta no Buraco nasce em Lisboa à margem dos biscates remunerados de Andreia Farinha. Às margens da institucionalidade, foi criando espetáculos quase sempre de bolsos vazios. Em parceria com João Melo e em colaboração contínua com José Smith Vargas, Bernardo Álvares, Manuel Bivar, Luísa Homem e mais recentemente com Raphael Soares, Faia Supico e João Ayton têm, desde 2015, tentado pensar socialmente a vida e a cultura. Pegando nas palavras de Andreia Farinha, Truta no Buraco propõe-se “a produzir pensamento crítico sobre o mundo através de uma cultura mais acessível, menos apelintrada e piegas politicamente”.

A ironia, o sarcasmo e o sentido de humor perverso são características subjacentes no discurso desta performance. O tema das histórias que vão sendo contadas é sempre o mesmo: pássaros. No entanto, na descrição pormenorizada destas histórias percebemos que muitas vezes o protagonista é o ridículo encantador da espécie humana e não os pássaros. O genérico inicial em vídeo faz alusão ao cinema de Hollywood. O imaginário trash deste cinema é uma característica presente ao longo da peça, desde a encenação e interpretação da equipa de atores, aos efeitos visuais e plásticos do cenário. O sangue artificial expelido num dos atos da peça materializa esta ideia. Andreia Farinha quer comparar o peso do olho de um falcão com o olho de uma pessoa. Chama Zé, seu assistente (interpretado por João Ayton), para que este ceda generosamente o seu olho. A generosidade de Zé não se deve ao carinho ou admiração que tem pela Andreia, deve-se sim ao medo pelo seu autoritarismo. Esta personagem é uma sátira que representa o estereótipo do assistente submisso na produção artística: aceita fazer qualquer coisa para entrar e estar no mundo da arte. Zé chega-se à frente calado e aterrorizado com o que lhe vai acontecer. Andreia aproxima-se e em poucos segundos arranca o olho do personagem com uma colher. Há sangue por todo o lado. Louis está em sofrimento curvado com as mãos no lugar onde outrora esteve o seu olho direito. O sangue escorre velozmente pelas suas mãos sujando tudo o que está à sua volta. Dado o ato consumado, Andreia apresenta o olho à plateia enquanto Zé apressa-se em sair do palco. A estética deste momento vai ao encontro do já referido imaginário trash do cinema de Hollywood, os truques (efeitos especiais) utilizados exploram o exagero e o absurdo característicos deste cinema. Há um outro momento na mesma linha de pensamento que é o vídeo que encena o momento dramático entre Louis (João Ayton), cozinheiro, Hugo (Bernardo Bertrand) chefe de serviço de mesa e Farah Diba (Catarina Rodrigues), mulher de Mohammad Reza Pahlavi, Xá do Irão na época. Farah Diba foi a responsável pela contratação de ambos e não queria problemas. Hugo e Louis entram numa discussão que termina violentamente. Este drama acontece numa festa megalómana em pleno deserto organizada pelo Xá. Como decoração da festa foram encomendados milhares de aves. Morreram cinquenta mil pardais europeus devido às condições adversas do deserto. O vídeo demonstra como teria sido este momento recorrendo à ideia e à estética de Trapped in the closet, conjuntos de videoclips de R Kelly. A sincronia da voz cantada na dobragem das falas das personagens, a música, a representação e o drama são uma imitação clara e assumida. Estamos perante mais um belo momento trash. O humor, o sarcasmo, o exagero e o ridículo estão novamente em jogo — a performatividade do espetáculo vive permanentemente neste jogo.

No início da peça Andreia propõe-se a fazer uma receita alentejana chamada peru recheado à moda do avô da granja. A referência é de Alfredo Saramago, um antropólogo apaixonado pela gastronomia e os seus saberes. Esta receita contém um tordo, um pato-ganso, uma perdiz e uma galinha. As aves são mortas na véspera de Natal e ficavam toda a noite mergulhadas num alguidar de barro, com água e vários limões cortados. Eram de seguida desossadas e temperadas com sal, pimenta e alecrim. A receita é bastante longa, mas termina com o tordo enfiado no bucho da perdiz, a perdiz enfiada no bucho da galinha e finalmente a galinha enfiada no bucho do ganso. A meio do espetáculo Zé retira o peru de cena, já devidamente condimentado, e coloca-o (supostamente) no forno. No final da performance Zé é uma vez mais solicitado (sempre de maneira elegante e arrogante) por Andreia Farinha para que traga o peru recheado à moda do avô da granja já cozinhado. O peru (que está fumado e não cozinhado) é colocado em cima da mesa (que está coberta com uma toalha de mesa) junto dos copos de champanhe servidos por Zé naquele momento.

Andreia chama de seguida João Melo (cocriador e técnico) a palco e este recusa-se, não lhe responde fingindo que não ouve. João Melo além de ser cocriador é também que faz a captação e edição de vídeo, estando nesta cena a representar o papel de técnico. Exalta-se porque acha inadmissível um técnico não responder imediatamente ao que lhe é pedido. Sai do palco em direção do João e começam a discutir sorrateiramente. Esta discussão é um estereótipo da relação entre técnico e artista, que muitas vezes é abusiva devido aos caprichos do último. Andreia exige ao João que tem que subir ao palco que não há volta a dar e João subordinadamente vai para cima do palco. Chateado, organiza os copos de champanhe preparado para tentar o famoso truque de retirar a toalha sem derrubar os objetos que estão em cima da mesa. Cria-se uma mínima tentação no público muito curiosa: mesmo tendo praticamente a certeza de que aquele momento ia dar errado, paira uma mínima esperança de que talvez dê certo. Claro que dá errado, tudo é derrubado para o chão incluindo o próprio chão que cai junto com tudo o resto. Eles passarão, Tu passarinho – Uma história política das aves termina com João Melo a cantar os créditos do espetáculo com a música de George Michel Careless Whisper. Mais um belo momento ridículo.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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