Le regard et l’excédent, entrevista a Ricardo Zúquete
A exposição Le regard et l’excédent surge das sessões fotográficas de três espetáculos: À espera de Godot, de Luís Vicente, E morreram felizes para sempre, de Nuno Moreira e Ana Padrão, e Tragédia Optimista, de Rodrigo Francisco. Tem a curadoria de André de Quiroga e está patente até dia 15 de dezembro, na Sala do Rei na Estação do Rossio, em Lisboa. Estivemos à conversa com Ricardo Zúquete sobre as singularidades e características desta exposição, sem esquecer o seu olhar e entendimento sobre a relação entre teatro e fotografia.
Rodrigo Fonseca – Referes que Le regard et l’excédent documenta “rituais de passagem”. Que rituais de passagem são documentados nesta exposição? “Ritual de passagem” é para ser entendido num sentido religioso?
Ricardo Zúquete – Não propriamente. A ideia parte dos princípios da fenomenologia de Merleau-Ponty. Há um certo sentido de ritual no modo de estar na nossa vida quotidiana. Sou arquiteto e professor, a minha preocupação começou pela presença que se gera num determinado espaço. Os gestos que ali atuam (referindo-se ao teatro), o modo como nos sentamos, como andamos, enfim, a maneira como se desenvolve toda uma teia de pequenas ações que pode ser vista como ritual. O corpo e a sua relação com o que está em torno, no teatro, conta uma história, há uma narrativa, há um texto e uma parte indizível além do texto. Esta exposição procura esta qualidade indizível. Esta qualidade relaciona-se com os gestos do corpo, com a sua presença. Ela completa a narrativa com os elementos essenciais que estão para lá do texto — é nesta linha de pensamento que falo em rituais.
RF – De que maneira é que as particularidades do espaço temporal de cada peça influenciaram a sua fotografia? As técnicas dramáticas/performativas e o corpo que surgia em cena eram muito diferentes em cada uma das peças?
RZ – A imagem é uma coisa absolutamente vulgar hoje em dia, de uma leveza muitas vezes inacreditável. Assistimos pacatamente sentados no sofá há maior das barbaridades. A imagem foi perdendo peso, e nesse sentido foi perdendo responsabilidade. A fotografia, no meu ponto de vista, deve assumir a responsabilidade da sua práxis, deve ter um papel central na nossa cultura e alertar para o mundo de gestos, de expressões, de olhares que muitas vezes ficam em segundo plano no nosso dia a dia. Talvez lhes demos a atenção que merecem… Um gesto pode ser muito mais importante que uma palavra, muitas vezes banalizamos as imagens que nascem desses gestos. A geração mais nova está agarrada ao telemóvel a mandar WhatsApps sem saber que expressão é que está no outro lado. Colocamos uns emojis e umas coisas para dar a entender a expressão que queremos dar aquela frase. A importância do gesto é esta. Procurei fragmentos de gestos que figurassem pequenas peças, devolvendo essa responsabilidade à fotografia: procurar o olhar atento das pessoas.
RF – Além de fotografar o espetáculo a acontecer, fotografa também ensaios, provas de guarda-roupa, bastidores e os corredores do Júlio de Matos. Pode partilhar um pouco como foi a experiência nesses dois campos de intimidade? Público e privado.
RZ – Variou um pouco. Na peça E morreram felizes para sempre não tínhamos acesso ao texto, o elemento surpresa era fundamental. Em todas as outras peças li antes o texto e assisti a alguns ensaios. Queria perceber e ouvir algumas conversas entre o encenador e os atores, queria perceber qual era o universo e a atmosfera que o encenador imaginava, qual era a narrativa que queria compor para o espetáculo. Fotografei em seguida os ensaios corridos expectante com o que tinha presenciado nos ensaios intercalares. As fotografias procuraram ser o meu olhar sobre o olhar que o encenador tinha sobre o texto e a peça. Deixei-me envolver no trabalho da equipa de atores, cenário e iluminação de forma a que as fotografias acontecessem naturalmente — partindo também do conhecimento prévio que tinha das peças. Não me considero um caçador de imagens e recuso sê-lo. Queria estar por dentro do conceito daqueles espetáculos e do esforço dos atores. Há muitas fotografias que não mostro, fotografias que gosto imenso e que têm que ver com o trabalho do ator, momentos de frustração e sobrelevação. São fotografias muito bonitas que provavelmente nunca vou mostrar publicamente, contudo retratam o poder do envolvimento do ator a ensaiar — algo lindíssimo! A paixão pelo o teatro e a sua relação com a fotografia é o que me interessa. Não vou fotografar com ideias pré-concebidas, procuro o espaço entre estes dois universos.
RF – Refere que “o olhar deve ser um intenso processo de (re)conhecimento e que “o teatro é o melhor lugar para testemunhar essa intensidade da complexidade humana na expressão e vida dos seus dramas”. Em Preparação do Actor, Stanislavski desenha e estabelece uma teoria e uma fórmula do que é e como deve ser o trabalho do ator: deve expressar intensamente os seus sentimentos, deve mergulhar dentro deles de maneira a chegar à expressão “verdadeira”. Stanislavski é representação e não vida. Porque é que o teatro é para si o melhor lugar para testemunhar a complexidade humana, os seus dramas e verdades?
RZ – No fundo todos vivemos num lugar de encenação, todos representamos um determinado papel na nossa vida; eu agora aqui estou no papel de entrevistado, você no papel de entrevistador, de manhã estive no papel de professor, durante a hora de almoço estive a desempenhar o meu papel de pai… Todos nós interpretamos diversos papeis. Nas aulas que dava na altura aos alunos de primeiro ano, explicava a arquitetura como um lugar que existe para ser povoado e habitado: não se trata de uma caixa vazia que habitamos sem sentido. O conceito de círculos de concentração de Stanislavski ajudou-me muito nestas aulas; como é que as personagens se organizam umas com as outras, como é que se organizam em relação ao cenário, qual o sentido dos seus gestos… Usei esta metodologia para a arquitetura. No teatro existe de facto uma história a contar, não é como se estivéssemos sentados na nossa casa durante um fim-de-semana no nosso quotidiano habitual. No teatro há uma história e uma narrativa. Algumas das fotografias são dípticos numa imagem só, curtíssimas sequências de uma fotografia que visa retratar um fragmento da peça, um fragmento da narrativa que no fundo é aquilo que o ator está a tentar contar. Nesta exposição há uma implícita homenagem ao teatro, uma homenagem à dimensão tremendamente humana que os atores tentam partilhar. No cinema também acontece, evidentemente, mas no teatro acontece a metros de distância, há uma vibração enorme.
RF – Pegando no título, o que é que é excesso nesta série de fotografias?
RZ – Há um texto muito bonito de Merleau-Ponty onde refere uma expressão que adotei para o título desta exposição. Temos o olhar, mas depois há um universo bem mais complexo que é quase a extensão desse olhar. Muitas vezes as pessoas pensam que é uma coisa supérflua e excedente, mas não é. Por vezes um gesto que se faz é mais eloquente do que aquilo que se está a dizer, é mais intenso a expressão facial do que aquilo que se acabou de dizer. Se o olhar for entendido como uma coisa meramente útil passamos a achar que o resto é excesso, e não, esse excedente é o que dá alma e profundidade a esse olhar. Fizemos este ano em arquitetura um ensaio com sem abrigos e uma das coisas muito comoventes que partilharam connosco foi a saudade que tinham do reconhecimento das pessoas. Já ninguém os olhava. Esse olhar era o que mais lhes fazia falta. Tenho a sensação que foi isto que M.-Ponty quis salientar e apelar: os aparentes excessos estão na base no olhar humano e humanizado.