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“E é como se então de repente eu chegasse ao fundo do fim, de volta ao começo”. Trauma Response – exposição coletiva

Ao começar a ler o texto de sala da exposição, a música De volta ao começo da épica Gal Costa veio em mente. A música é do álbum Profana de 1984. Gal canta:

“E é como se eu despertasse de um sonho
Que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito
Com as cores que eu não sonhei
E é como se eu descobrisse
Que a força esteve o tempo todo em mim
E é como se então de repente
Eu chegasse ao fundo do fim
De volta ao começo
De volta ao começo
Ao fundo do fim
De volta ao começo”

Chegar ao fundo do fim, de volta ao começo. Essa me parece ser uma das rotas de leitura possíveis da exposição Trauma Response que conta com a curadoria de Judith Hofer. O trauma – como uma ferida aberta – provocado por um choque violento e muitas vezes contingente “molda o nosso mundo”, como Hofer prudentemente afirma. O universo íntimo e privado, se compõe e se recompõe, pelos destroços, troços, pedaços, fragmentos, bocados, e todos os sinónimos das ruínas ou aquilo mesmo que reclamamos como História, seja familiar ou mesmo como espécie ameaçada e supervivente chamada Homem. Os trabalhos expostos me levaram à um processo de reconsideração da dimensão temporal da consciência. Ou, reorientação da consciência em sua dimensão temporal. Ou ainda, a consciência diligente da dimensão temporal – passado e futuro – como resposta e atitude para se viver o Presente apesar dos traumas que perpetuam por gerações. O Presente na sua vocação comemorativa (!) Atitude: reescrever o passado com o olho no futuro, criar ficções das memórias que sobrevivem nas atmosferas virtuais dos sobreviventes (Eu, tu, você e ele).

O encontro de diferentes abordagens estéticas e reflexivas dos artistas expostos valoriza uma trajetória multissensorial e intrincada de um acontecimento traumático e a sua resolução. Da emoção em profusão, como no vídeo Tantrum, da dupla MARIE ANTOINETTE, ou na instalação catártica O dente que sobrou de Maria Máximo; à contemplação e transcendência em Passing, pintura de Theodore Ereira-Guyer. As monotipias de Juliana Matsumura valorizam a surpresa como resultado satisfatório do gesto, postura tão necessária frente aos desafios das reconfigurações provocadas pelas erupções traumáticas. Os dois trabalhos em canvas de Filipe Cortez, The skin of the canvas e Untitled (Memory after Memory series) eludem aos vestígios em camadas acumulados pelo tempo em sua qualidade abstrata. A instalação de Yota Ayaan, (ESP) Response, composta pela matéria fúngica em estado de desenvolvimento e a projeção do filme The Basket, uma narrativa que investiga hipóteses da telepatia e as faculdades percetivas, provoca uma conjuntura que me interessa: a da curiosidade.

O trabalho em vídeo Mueda 1979 | The Mozambique Archive Series de Catarina Simão se concentra na reprodução de uma narrativa histórica, neste caso uma insurreição contra a colonização portuguesa em Moçambique. Uma cena em particular deste trabalho me afeta: o soldado pergunta à Modesta (excelente primeiro nome para a personagem principal): “O que é isso que você carrega? Ela responde: é mandioca. Não sabe o que é mandioca? Não são moçambicanos?” Neste afeto que me atravessa, me aproximo daquilo que faz parte do meu Começo: mandioca – frita, cozida, na sopa, no escondidinho – comida brasileira com raiz africana. Nutrição e sustento das gerações passadas da minha família e a minha experiência do presente em constante elaboração de introduzir o que me alimentou e me frutificou na minha vida cá, em Portugal. “Like the Jacarandá tree, that blooms twice a year in Portugal, in spring and again in autumn, when it is springs in its origin Brazil – we also can evolve and create something beautiful out of our traumata.” Hofer termina o texto de sala com essas palavras e eu repito o feito.

A exposição Trauma Response está patente no Duplex AIR até o dia 8 de dezembro de 2021.

Maíra Botelho (1991, Brasil) tem uma formação multidisciplinar dentro dos campos da comunicação visual, artes plásticas, filosofia e performance. Atuou profissionalmente como designer gráfica no Brasil após se licenciar na PUC-MG, tendo ainda estudado Artes Plásticas na Escola Guignard - UEMG e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Recentemente concluiu uma Pós-Graduação em Estética - Filosofia na Nova Universidade de Lisboa.

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