Previsão de Deriva, Márcio Vilela
“Previsão de Deriva vem desse método científico que a marinha emprega para prever onde está um náufrago. Tudo que cai à água tem um arrasto diferente. Há um software que prevê com as diferentes condições e o tipo de embarcação, por onde andará para que as equipas de busca saibam onde estará a embarcação – essa é a previsão da deriva”, diz Márcio Vilela sobre um projeto em desenvolvimento desde 2015, que o levou a passar o equinócio de outono numa balsa salva-vidas na costa da ilha de São Miguel. Falamos com o artista sobre Previsão de Deriva numa visita ao seu estúdio em Lisboa.
Margarida Oliveira – Acompanha-nos pelo início de Previsão de Deriva.
Márcio Vilela – Este é um trabalho que começa em 2015, inicialmente pensado para ser concretizado nas ilhas Berlengas. Fui para as lá e preparamos tudo, foi pedida uma autorização à marinha, assinei o documento de responsabilização e todo um outro conjunto de assuntos burocráticos necessários para possibilitar o projeto. Mas nesta primeira experiência a balsa tinha um problema técnico, começou a perder pressão, e eu chamei o barco de apoio pelo rádio. Ela tem uma bomba manual dentro, porque perde pressão naturalmente, mas não àquela velocidade. Eu estava a usar a bomba, mas ela continuava a perder pressão e o teto já tinha caído, já era uma espécie de piscina. O barco veio e retirou-me. É engraçado que a maioria dos projetos que eu faço levam muito tempo a concretizar, anos até, e lembro-me de não ter ficado zangado ou desiludido porque eu tinha pensado este projeto em 2014 e estávamos a executá-lo em 2015, mas havia alguma coisa em mim que me dizia que eu não tinha a maturidade suficiente para executa-lo e que eu precisava de mais tempo. Portanto este projeto em 2015 saltou para 2021, e agora que o fiz tenho total consciência de que nunca teria conseguido fazer o que fiz há 3 semanas atrás naquela altura.
MO – Houve alguma alteração ao projeto desde a primeira tentativa de execução em 2015?
MV – O projeto concretiza-se quando a história é contada em exposição. Eu lanço a balsa, levo um GPS, uma câmara de vídeo pequena e uma câmara polaroid. Portanto não tem necessariamente que ver com o que eu teria mudado no projeto, mas na forma como eu teria lidado com o projeto numa fase posterior.
MO – Como nasce a ideia deste projeto?
MV – Eu sempre tive uma relação muito forte com o mar. Eu nasci numa cidade do litoral do Brasil, e a minha família, principalmente o meu pai, adorava a praia. Qualquer feriado ou fim de semana, não havia outra atividade que não fosse ir para a praia, a questão era apenas qual praia. Desde criança que sempre fiz surf com o meu irmão, enfim o mar era o meu lugar feliz. Houve essa hipótese de ir fazer um projeto para as Berlengas numa altura em que eu estava à procura daquele que era o limite do exequível, ou seja, eu estava sempre à procura daquele que seria o limite máximo do que eu conseguiria executar. Para mim com esta relação que tenho com o desenho, sem saber desenhar, pensei que poderia usar a balsa como um veículo de desenho. Nessa altura a balsa enquanto uma pequena metáfora fazia também muito sentido, tu decides muitas coisas, mas no fundo não controlas a tua vida da forma que achas que controlas. A balsa era a metáfora perfeita porque eu decidi o veículo, decidi o lugar e a data, mas depois de entrar e soltar aquilo vai. Tinha também um grande receio que achei que era interessante que era o medo do mar. Sozinho à noite com uma profundidade debaixo de ti que não sabes qual é, ou sabes e é ainda pior. Nas Berlengas eram 5 km. Vivi sempre com o receio se iria ou não conseguir. 95% das pessoas com quem falei disseram-me que eu não ia conseguir, “Não vais conseguir porque vais enjoar” “Não vais conseguir porque vais ter medo à noite”, na realidade as pessoas estavam a projetar em mim os seus próprios medos, estavam a dizer-me porque é que elas próprias não conseguiriam. Quando falhei a primeira tentativa do projeto tatuei um desenho técnico de uma balsa na perna. Queria que fosse visível para eu não me esquecer, queria poder olhar para ela. Tenho as pernas todas tatuadas com projetos futuros. É uma espécie de compromisso.
MO – Quanto tempo foi?
MV – Foram 56 horas. 3 dias e duas noites. Curiosamente no dia do resgate eu pedi para ficar mais tempo, queria ficar mais 24 horas, mas não me deixaram.
MO – Não te deixaram?
MV – Uma das coisas centrais do projeto em termos de segurança era que eu não tinha controlo de quando o projeto acabava. Eu sabia que estando lá poderia perder noção das condições necessárias para continuar o projeto e tomar decisões ingénuas. E no final eles tinham razão em ir-me buscar, que quando saí da balsa não conseguia andar. Depois de três dias deitado eu não me conseguia aguentar de pé. Portanto eu não estava com total noção de que o meu corpo estava a sofrer. O plano inicial era que estar na balsa durante 96 horas, a marinha não queria autorizar mais do que 24h, fiquei 56h. Era muito importante para mim passar a noite no mar por causa do confronto com o medo. À noite tudo desaparece e os teus sentidos vão para o máximo, ouves melhor, vês e cheiras melhor, ficas com todos os sentidos apurados. Deitava-me por volta das 11h da noite e acordava às 2h da manhã e essa era a hora a que mais trabalhava. Lancei a balsa no equinócio de setembro, um dia de lua cheia… foi indiscritível. A noite estava completamente limpa, vi a lua nascer, a fazer todo o percurso e vi-a a pôr-se na mesma altura em que nascia o sol. Eu via a lua, via o sol e via ainda as constelações no céu.
MO – Imagino que a fará parte da experiência a entrega à dimensão marítima, pela localização claro, mas pelos sentidos também, pelo som e cheiro e, claro, pelo movimento do mar.
MV – Completamente, não estás quieto um segundo. Nunca tive enjoos no mar, fico enjoado apenas se não dormir. Quando saímos de São Miguel eu não dormi, que estava a viver um momento de não retorno. Estávamos no barco, com uma tripulação e uma equipa de cinema que está a gravar um documentário realizado pelo Luís Costa sobre o projeto, e eu não podia mudar de ideias. A pressão que estava a sentir levou-me a entrar na balsa completamente enjoado. A balsa era nova e quando foi aberta tinha um cheiro a borracha incrivelmente intenso, quando entrei pensei que não ia aguentar. Mas foi o único momento. Sabia que tinha que aguentar uns trinta minutos para o cheiro passar, para entrar o cheiro do mar, deitei-me e fiz um exercício de respiração, e o enjoo passou.
MO – Em algum momento entraste na água?
MV – Sim, que era outro medo que eu tinha. Estar em alto mar, com três mil metros de profundidade, e a água dos Açores que é de um azul indiscritível – por ser uma ilha vulcânica tem poucos sedimentos na água. Os raios de luz projetam-se para a água e vês tudo, a primeira vez que entrei o meu coração disparou, fiquei um pouco e voltei para dentro da balsa.
MO – Há uma tendência para assumir o papel de espectador perante um “espetáculo” da natureza, qual foi a tua relação de envolvimento com o que se estava a passar à tua volta?
MV – Todos sabiam que eu estava ali. Os peixes procuram a sombra e ficavam, portanto, debaixo da balsa; os pássaros vinham descansar em cima da balsa durante o dia. Quando saí da balsa nas Berlengas, que estava furada, ela ficou na água e os golfinhos apareceram para espreitar para dentro. Tinham total consciência. Eu peço sempre licença para entrar nestes lugares, entro sempre com profundo respeito e profunda admiração, e corre sempre tudo muito bem.
MO – Qual foi a distância percorrida?
MV – 85 km. Previsão de Deriva vem desse método científico que a marinha emprega para prever onde está um náufrago. Tudo que cai à água tem um arrasto diferente. Há um software que prevê com as diferentes condições e o tipo de embarcação, por onde andará para que as equipas de busca saibam onde estará a embarcação – essa é a previsão da deriva. Portanto havia uma previsão de onde a balsa andaria que será apresentada contraposta ao que de facto acontece. Esses dois desenhos serão expostos.
MO – Sentes que esta experiência alterou a tua relação com o mar?
MV – A primeira vez que fui para a praia surfar depois de voltar, estava ali sentado na prancha, no mar, rodeado de gente, e sentia que carregava comigo um segredo meu e do mar, sentia-me extremamente privilegiado, como se estivesse em casa do meu pai. As praias no Brasil são incríveis, mas é areia branca, água quente e água de coco. Aqui tem essa coisa do sublime, na praia há rochedo e frio, dá para sentir o poder do mar.
Márcio Vilela apresenta-nos uma investigação artística que se materializa através de uma provocadora procura do limite da criação e do limite do próprio artista. Ficamos a aguardar a exposição de Previsão de Deriva e o documentário de Luís Costa sobre o projeto.