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Jacuzzi, de Manuel Solano, na Kunsthalle Lissabon

O olho é o órgão que dita, comanda e faz síntese. O olho monopoliza, e a informação que capta precede a de todos os outros sentidos. Numa era marcadamente visual, em que a imagem tem uma ontologia que se confunde com a da civilização moderna, o olho, o olhar, a visão impera na jurisprudência, experiência e perceção do mundo – i.e., da vida no mundo –, mediando, computando, avaliando, construindo e desconstruindo, sempre, e ainda que latentes, imagens e mais e mais imagens. A memória de artista é maioritariamente visual; o seu entendimento da prática também.

Que sucede quando o órgão maior que é a visão falha ê artista, quando o mundo que ê artista dava por adquirido mais não é que um véu muito opaco que veda o olhar e obriga a um reentendimento e ressignificação da sua posição no mundo e da natureza da sua prática artística, agora incapaz de processar através do olho, medir através do olho, perceber, avaliar e sintetizar a sua experiência estética do trabalho que produziu. É uma cesura existencial, dramática, que obriga ao desenvolvimento de novas capacidades que se erguem por detrás desse instrumento-consciência defunto.

Já não será o olho a comandar a mão, a guiar o gesto; já não será a visão a inferir o resultado desse gesto, a calibrá-lo, a retocá-lo. Agora é o corpo todo que comanda, nas suas valências e insuficiências, compreendendo que essa insuficiência não é, de todo, fatal, não representa uma deficiência, representa sim, e sobretudo, uma diversidade funcional, plena de potencial construtivo.

Em 2014 ê artista mexicane Manuel Solano (1987) perdeu a visão depois de uma infeção derivada do VIH. Essa perda ditou dois momentos no seu corpo artístico, como seria de esperar. Antes, Solano experimentara a fotografia, a composição digital, a instalação, a escultura com detalhes minuciosos, o vídeo. Todas as ferramentas com potencial imagético estavam à sua disposição, sem limites, abertas ao experimentalismo tentacular e multidisciplinar da arte contemporânea. A cegueira precipitou uma mudança imperiosa no modo como trabalhava.

O tato e o arquivo de imagens que guarda quando a luz era total e as cores brilhavam de um lado ao outro do espectro e das formas guiam e constroem agora as suas pinturas. A “abordagem ‘háptica’”, feita com a perscrutação dos dedos, linhas e alfinetes para as geometrias mais precisas e o auxílio eventual de um colaborador têm permitido a Solano um exercício, não obstante as limitações inerentes, tão grande como a vida, tão imenso e complexo como a memória. Nesta perspetiva, ê artista não trabalha sobre a cegueira e o trauma, trabalha, sim, sobre a memória e as suas possibilidades criativas depois do trauma.

As obras expostas em Jacuzzi, na Kunsthalle Lissabon, resplandecem de cores saturadas, sem que a sua construção seja escamoteada. São maioritariamente representações de espaços amplos, vazios, mas com vestígios de ocupação. Não há corpos, apenas a melancolia da sua passagem. E a melancolia de nunca ter experienciado esses mesmos espaços. São emulações de desejos, na expectativa de construir em si, no glossário arquivístico imagético da mente, da memória, a imagem que nunca viu, nem nunca verá. “Antes de cegar”, refere Solano, “eu era â melhor pintore que podia imaginar, certamente â melhor que pessoalmente conheci. Neste momento não tenho tanta certeza. O meu trabalho continua a ser, contudo, referencial e íntimo; queer e nostálgico; tonto e provocador; exuberante e cativante.” Em Solano, a arte é um lugar: de individuação, de autorreferenciação, de afirmação, de – lato sensu – recuperação. E é sobre éle, exclusivamente sobre éle – sem desculpas nem subterfúgios ou dissimulações.

A tela torna-se um enorme mapa, orientado pela mão e pela a memória remanescente e reminiscente dos objetos e das imagens do passado. A natureza tátil do trabalho constrói no interior de artista um território mental tentativo, que é paulatinamente preenchido por tintas aplicadas com os dedos. A conta do Instagram de artista mostra despudoradamente o que se supunha a intimidade do processo criativo, tão revelador e hipnotizante no seu caso.

No limite, a obra de Manuel Solano relembra o que Saramago veiculou em Ensaio sobre a cegueira: estão cegos apenas os que conseguem ver – cegos na sua arrogância funcional, cegos na delirante tentativa de comandar o mundo através de um só sentido, sem consciência para lá dele, sem alternativas significantes para lá dele.

A vida torna-se frágil uma vez subtraído ao corpo um instrumento. Mas toda outra vida, todo outro quotidiano renasce – humilde, ciente da necessidade cooperativa do outro e desperto para essa coisa tão esquecida enquanto adultos e que é a imaginação.

Jacuzzi, de Manuel Solano, pode ser visitada até 27 de novembro, na Kunsthalle Lissabon, Lisboa.

 

Nota: o texto procura seguir as normas da Língua Portuguesa Neutra. Mais informações aqui e aqui.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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