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Nada existe: Rui Chafes na Galeria Filomena Soares

As obras ao negro

Um momento de pausa. Ou talvez o início de uma viagem: solitária, silenciosa e espiritual, rumo a tempos longínquos. Uma experiência de abandono e de desnorte. Um convite à peregrinação. A instauração do desconforto e da dúvida. A renúncia ao entretenimento. Uma cicatriz por sarar. As obras ao negro. O confronto com a morte e o sonho da ressurreição. O apelo à liberdade e à resistência. O ferro prestes a levantar voo e as máscaras prestes a caírem. Em Nada existe – exposição individual de Rui Chafes visitável na Galeria Filomena Soares até 20 de novembro – existe tudo o que é expectável e desejável (sem comprometer o espanto), do artista e da sua obra, e da arte no geral.

As esculturas que compõem a mostra (dezasseis no total, doze das quais produzidas entre 2020 e 2021) consolidam as principais características identificativas do cunho autoral de Chafes, nomeadamente a sobriedade das formas que concebe, o perfeccionismo associado à sua execução, e a aparência imaculadamente lisa das suas superfícies. Reafirmam, também, o facto de as obras de Rui Chafes serem sempre, sem exceção, concebidas em ferro e pintadas de negro ou cinzento. O recurso ao ferro potencia, sobretudo quando as obras assumem contornos assumidamente orgânicos, o estabelecimento de um jogo desafiante e ilusório com o espectador, que oscila entre a consciência do seu peso real (ou aproximado), e a estranheza e incredulidade perante a aparente leveza e a probabilidade de mobilidade e elevação que as peças sugerem – sendo que, nesta exposição, a maioria das esculturas se encontra disposta no chão, forçando o espectador a curvar-se em sinal de reverência e rendição (nunca resignação).

Umas das peculiaridades mais diferenciadoras, surpreendentes e cativantes da produção artística de Chafes, que o recurso exclusivo ao ferro contribui para sustentar, é a intemporalidade que as suas obras evocam. Não sendo facilmente datáveis, ou seja, não revelando, através da sua constituição (mas também aparência, alternadamente arcaica e futurista), o período da sua execução, conseguem suspender, de certo modo, a passagem do tempo. As esculturas do artista revelam-se propensas à eternidade, não só pela capacidade de resistência e regeneração associada ao material, como também pelas permanentes e inquietantes reflexões que espoletam, em especial no sentido da importância do resgate de uma espiritualidade perdida. Definitivamente, as criações de Rui Chafes não são prisioneiras do seu tempo, não refletindo a realidade ou atualidade, acabam por ter o mérito de as transcender. O seu trabalho é sobre a melancolia de um lugar perdido, afirma. Aliás, o artista assume uma posição muito crítica e de consciente afastamento face à contemporaneidade, condenando o excesso de materialismo e massificação que a caracterizam – inclusivamente, numa autobiografia ficcionada (2011), Chafes determinou o seu nascimento no ano de 1266.

As cores (preto ou cinzento) com que pinta as suas esculturas, com a declarada intenção de ocultar o material, aludem à morte e à noite. Para Rui Chafes, quem faz arte cita, inevitavelmente, a morte, associando-a sempre a um momento de passagem que nos deve recordar o assombroso milagre da vida. O artista defende que é, acima de tudo, a consciência da morte que nos mantém despertos, e que o belo não se pode exprimir se não transportar em si reminiscências invocadoras da finitude. Por outro lado, o manto da noite impõe-se sobre a obra de Chafes porque é maioritariamente no período noturno que o sono nos vence, que o esquecimento encontra leito e as revelações podem, finalmente, despertar.

As influências no artista são diversas e assumidas: o romantismo e o idealismo alemão, a Idade Média, o gótico tardio, o barroco, o humanismo, o minimalismo e o pós-minimalismo, bem como a arte conceptual. Da herança do modernismo, Rui Chafes repescou a negação da base/pedestal, o sentido de verticalidade da maioria das suas obras e um entendimento da escultura enquanto «anti-monumento».

Finalmente, importa destacar que muitas das criações de Chafes – caso das quatro esculturas em exposição que, datadas de 2017, serviram de estudo para a obra La Nuit (que integrava a obra Le Nez, de Alberto Giacometti) – sugerem ter sido anteriormente habitadas por corpos que combateram, ferozmente, para se conseguirem, por fim, libertar – de armaduras, armadinhas, objetos de tortura ou dispositivos de batalha, que os mantinham sofridamente aprisionados. Parecem evocar a perpétua divergência entre o corpo e a alma, suposta dicotomia que interessa bastante ao artista, privilegiando, sem hesitar, a segunda dimensão.

O confronto com estas obras em particular, dispostas numa sala diferenciada, trouxe-me à memória a personagem infantil Pinóquio (criada no final do século XIX, por Carlo Collodi), cujo nariz crescia sempre que dizia uma mentira. Se, à semelhança do menino esculpido em madeira, nos desejamos tornar plenamente humanos, então, devemos ter a coragem de nos predispormos a ser feridos, pela nossa própria consciência, com o intuito de aceitar a penosa verdade de que, citando Novalis (como Rui Chafes recorrentemente faz), «Estamos sós com tudo aquilo que amamos».

Nada existe está patente na Galeria Filomena Soares até 20 de novembro.

Licenciada em História Moderna e Contemporânea, possui uma pós-graduação em Gestão Cultural e outra em Jornalismo. Fundou, coordenou e foi redactora da revista Artecapital. Foi redactora principal da revista Artes & Leilões e correspondente da revista Arte y Parte. Actualmente trabalha como mediadora cultural sobretudo no Museu Gulbenkian.

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