Uma vida inteira, de Nuno Sousa Vieira
Uma vida inteira, de Nuno Sousa Vieira, é um vasto exercício de construção e desconstrução espacial, em que o corpo é elemento basilar desse jogo ininterrupto de formas e perceções várias. E é justamente aí que nos apercebemos das muitas vidas que um objeto desenhado pelo artista teve, e das muitas que poderá vir a ter – da porta que virou cadeira, da “sala de exposições”, privada, que virou instalação pública, da série de janelas retiradas do seu lugar de origem para darem lugar a composições de cor.
Recordando a apologia do “modelo tautológico” e a sua articulação com “a aparência por vezes familiar de alguns objetos marcados por uma afetação de perda e abandono”, tal como sublinhado pela curadora da exposição, Ana Rito, as obras de Sousa Vieira têm sempre essa característica dúplice de se constituírem como algo absoluta e plenamente novo, ao mesmo tempo que estabelecem uma ligação – ainda que vaga, ainda que ténue – à memória da sua identidade primeira. Porque são peças que resultam de uma recombinação, recomposição e recuperação de elementos vários, de materialidades várias, de lugares vários, de identidades várias.
O lugar é sempre o mesmo – o atelier do artista. O trabalho, no limite, é sempre sobre o mesmo – a prática, silenciosa e aturada, do artista, o seu posicionamento no mundo, a sua cosmovisão do que se desenrola à sua frente… no fundo, a sua vida. O atelier na antiga fábrica da SIMALA está presente em cada objeto, ângulo, referência – um inesgotável campo de pesquisa e experimentação, em que a arqueologia industrial é parte do processo. A arte acontece nos desvios operados daquilo que recolhe, das angulosidades que lhe dá, dos deslocamentos, cortes e recortes da matéria.
E acontece também, ou sobretudo, no diálogo com o espectador – esse corpo que indaga, estranha e questiona as peças, numa conversa paulatina, feita de cadências e ritmos desacertados, mas não menos curiosos ou inteligentes. Porque a luz tem sempre gradações diferentes para cada um, e a clareza das formas espera, por vezes, um tempo que é sempre subjetivo. É com ele, enfim, com esse espectador, que o artista procura encontrar-se, mesmo que numa noite escura, mesmo que cegos. Não será em vão que a exposição termine numa sala quase escura, iluminada com a singeleza simbólica de uma lamparina de azeite. É esse o local de encontro, em volta de uma simples chama, num atelier sem luz elétrica nem água, que quando o sol se põe só os mais arcaicos métodos de iluminação funcionam para ver e ser visto, para construir e ser construído, para transformar e ser transformado.
Existe, portanto, um caráter performativo latente em todas as suas exposições e que Uma vida inteiro não foi exceção. Os corpos orbitam em torno do magnetismo da escala das peças, pedem ação, movimento, num tandem espectador-artista.
Não sendo uma exposição antológica – longe disso – Uma vida inteira congrega, contudo, todo o léxico formal, material e conceptual que Sousa Vieira tem vindo a desenvolver – e todo o rigor e controlo da construção, que vêm, aliás, sendo características da sua obra.
Uma vida inteira está patente no BAG – Banco das Artes Galeria, Leiria, até 10 de novembro.