Things do not change, we change: Sustentar no âmbito da Bienal de Fotografia do Porto
«Only that day dawns to which we are awake. There is more day to dawn. The sun is but a morning star.»
Henry David Thoreau, Walden; or, Life in the Woods, 1854
Tudo o que acontece com o mundo, acontece connosco.
Porque desde a criação do planeta, nada foi desenhado para estar apartado dessa intrincada e incessante ligação mineral, temporal, fulcral que assim nos conecta uns aos outros. À terra. A todas as formas de vida.
Num contexto de intermitentes crises existenciais, nas quais a destruição de ecossistemas, as invasões tecnológicas e a redefinição de relações sociais se antecipam e estabelecem, urge falar sobre este elefante na sala. Não porque é grande – é enorme – mas porque carecemos de tempo de ponderação. Se o mundo, tal como o conhecíamos, é forçosamente impermanente, aquilo que foi determinado pelo Big-Bang continua em crescimento exponencial, ainda que não da melhor forma. Assim nos dizem os experts, e assim o vemos – se estivermos atentos aos sinais da natureza. Não é espontâneo, é artificial. Humano. De quem intenta subjugar ubiquidade e exercício sobre o natural.
Se à nova mentalidade que se desenvolve desde o último século, atribuímos um sentido vasto de exploração e degradação, não é surpresa, portanto, que vivamos entre esferas de indiferença, desgraça, alerta ou consciência. Onde a melancolia convive lado a lado com uma mente impulsiva, ora de ação, ora de descrença, ou desinformação. E se a ciência, a quem imputamos tamanha responsabilidade e crédito, se encarrega de nos revelar os mais alarmantes prognósticos, e a tecnologia nada pode mudar que não parta das nossas mãos e atitudes, então cabe-nos a nós (re)escrever novas sequelas nesta história. Práticas dinamizadoras, narrativas influentes, motivadas e aptas à recuperação.
Toda a história para ser história tem sempre que começar, e qualquer princípio regenerativo dá-se pelo alerta. A arte, enquanto veículo catalisador, materializa-se pela prática curatorial e artística como trigger da discussão. Tantas vezes até, prelúdio da ação.
A Bienal de Fotografia do Porto, que este ano teve a sua segunda edição, trouxe para cima da mesa o assunto sob esse mesmo tema: Tudo o que acontece com o mundo, acontece connosco. Inserido no festival, o projeto Sustentar não se limitou a teorizar o problema, atuou in loco pelo país, onde o obstáculo é real; e a fotografia e o vídeo efetivaram a visão de quem viu a questão, a abordou artisticamente e promoveu a sua disseminação. A proposta era a de destacar os sucessivos desafios sociais, económicos e ecológicos hoje vividos em Portugal, através de uma atitude consciente da vulnerabilidade humana e que, fruto dela mesma, é capaz de contribuir, pela perspetiva artística, com alternativas para uma mudança essencial. Estoicismo, forma de cidadania proativa e sensata na conservação dos recursos naturais e do património cultural.
Desta primeira edição, oriunda de uma parceria com seis municípios nacionais, seis artistas bolseiros propuseram leituras pessoais e sustentáveis sobre iniciativas hoje instauradas para dar resposta às adversidades ecológicas locais. O acompanhamento curatorial esteve a cargo de Krzysztof Candrowicz, Pablo Berástegui e Virgílio Ferreira. Iniciado em março de 2020, este programa incluiu, além de seis residências (uma por cada artista), dois workshops e ainda a produção e curadoria de uma exposição itinerante pelos concelhos parceiros, iniciada na Bienal de Fotografia do Porto. Resultado? Seis visões, mapeamentos territoriais nascidos em contexto, decorrentes de uma proximidade com um igual número de iniciativas em curso no país: POCITYF (Câmara Municipal de Évora), Centro Museológico do Sal (Câmara Municipal da Figueira da Foz), Geoparque Algarvensis Loulé-Silves-Albufeira (Câmara Municipal de Loulé), Transição Agroecológica (Câmara Municipal de Mértola), Setúbal Preserva os bairros Grito do Povo e Pescadores (Câmara Municipal de Setúbal) e LIFE Montado-Adapt (EDIA).
Em Plena Luz é a voz fotográfica com que Elisa Azevedo discorre metaforicamente sobre iluminação, revelada quer pela iniciativa empreendedora e autossustentável de Évora per se, quer pela materialização da integração de sistemas inovadores de captação de luz solar na zona histórica da cidade.
Nas salinas da Figueira da Foz, a leitura delicada que faz Maria Oliveira sobre a luz tão própria que carrega o sal, transborda onirismo e mineralidade em De Vagar o Mar. Um simbolismo fotográfico que nos transporta a um universo pré-humano, uma intemporalidade aqui matizada pelas características particulares deste território.
Em Loulé, no Geoparque Algarvensis, onde se fundem estratégias de geoconservação com ações de educação e sensibilização ambiental, Nuno Barroso desenhou fotograficamente Geoparque: um arquétipo deste território, em jeito cartográfico a preto e branco, onde é convocada a sua faceta agrícola, energética e turística.
Em Art of Shading the Sun, Evgenia Emets debruça-se sobre as inegáveis e preocupantes mudanças climáticas em Mértola, ao propor uma transição agroecológica e agricultura sintrópica como exercício capital de adaptação e recuperação dos solos debilitados e pouco férteis. Num trabalho dividido em duas partes, um primeiro filme introduz-nos, via drone, a paisagem devastada pela escassez severa de água, acompanhado de uma série de entrevistas a habitantes locais que elucidam para a situação atual e as perspetivas de futuro.
Em Setúbal, Margarida Reis Pereira movimentou-se nos bairros do Grito do Povo e Pescadores, para neles mergulhar e instigar a um diálogo com as suas comunidades. Hoje, Translúcido reflete fotograficamente essa relação, objetivada segundo uma sequência maioritariamente díptica, onde o toque feminino, figurativo e subtil, nos leva a compreender as suas memórias e assim preservar as suas identidades.
No Parque de Noudar, junto à fronteira com Espanha, em Barrancos, Sam Mountford filma O Leito do Rio para comunicar como não só é perseverante, mas também possível, a fusão das esferas culturais, sociais e ecológicas em prol do respeito e regeneração desta região, que reúne esforços e anseios para reduzir o impacto da crise climática.
Sustentar incentivou múltiplos encontros entre a paisagem e o observador, entre as comunidades locais e o interveniente externo, entre especialistas e não especialistas, entre pares, artistas e curadores. Desses cruzamentos, que se adivinham férteis e promissores, foram salvaguardadas as características etnográficas e identitárias de cada região. Cada território foi palco vital e determinante de premeditação, lucidez e elaboração de novos paradigmas, métodos e diálogos mais condizentes com aqueles que são hoje a esperança e as verdadeiras intenções de uma humanidade que luta por um mundo melhor. Aqueles dos quais todos podemos tomar parte, contribuindo de forma crítica e consciente para novas formas de ver, interpretar e empreender desenvolvimentos sustentáveis.
De ímpeto vivo e de intervenção, Sustentar surge da autoria da Ci.CLO, estrutura independente de pesquisa e criação no campo da fotografia, que aspira a uma mutualidade e correspondência com outras dimensões artísticas, ambientais e sociais. É assim desde 2015 e, desde há três anos, também uma Bienal em coprodução com a cidade do Porto. De volta à cidade em 2023, certamente que manifestos como foi a Sustentar serão cada vez mais tangíveis no desenho da Bienal, já que o caminho para a idealização, conceção e manutenção de novas narrativas exige colaboração artística, cívica e institucional que, só em conjunto, terá a força necessária para estimular e cimentar oportunidades, gestos e mudanças, assentes na impreterível regeneração social e ecológica, que nos devolverá o planeta e as relações de forma digna, respeitosa e desejada. Pois, por certo, things will not change, unless we change.
Após as exposições no Porto, em Mértola e na Figueira da Foz, o projeto, ainda em itinerância, poderá ser visitado num dos seguintes locais:
Mourão, Museu da Luz // 28.10 – 12.12.2021
Loulé, Galeria de Arte do Convento Espírito Santo // 04.02 – 03.03.2022
Évora, Igreja de São Vicente e INATEL // 12.03 – 15.04.2022
Setúbal, A Gráfica // 27.05 – 19.06.2022
«Things do not change, we change.»
Henry David Thoreau, Walden; or, Life in the Woods, 1854