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Seja dia ou seja noite pouco importa: André Gomes e Pedro Calapez no Museu Coleção Berardo

Em 1945, André Bazin escreveu um ensaio intitulado Ontologia da Imagem Fotográfica. Neste defendia que o nascimento da fotografia libertara a pintura de ser refém do realismo, permitindo, assim, que esta se tornasse a sua própria musa. Para Bazin, a fotografia não cria, como a pintura, eternidade, ela embalsama o tempo subtraindo-o à sua própria corrupção. É, segundo ele, uma «alucinação verdadeira».

Em Seja dia ou seja noite pouco importa, patente no Museu Coleção Berardo até ao próximo dia 2 de janeiro, somos convidados a viajar entre a pintura de Pedro Calapez e as imagens-fotografias de André Gomes. A exposição, que reúne trabalhos inéditos dos dois artistas, convida-nos a pensar o valor ontológico da imagem e a emergir nas suas formas de ver o mundo.

O desafio de fazerem uma exposição conjunta foi lançado pela diretora do Museu Coleção Berardo, Rita Lougares, quando, há alguns anos, numa exposição de André Gomes, viu representadas numa das suas obras as mãos de Pedro Calapez a pintar. A sugestão foi ganhando forma na cabeça dos artistas e, ao fim de ano e meio de trabalho, a exposição chega até nós. São precisamente as mãos de Pedro Calapez que primeiro vemos quando entramos na exposição, o que nos transporta também para a relação da sua pintura com o corpo, com o gesto.

As obras do pintor foram organizadas numa série intitulada Um corpo entre corpos. Este título evidencia a relação corpórea da pintura de Calapez com os corpos que se movem à sua volta. A sua pintura é tanto um corpo que habita entre os corpos espectrais que encontramos nas obras de André Gomes, como um corpo entre os nossos próprios corpos que habitam o espaço da exposição.

Alexandre Melo assina o texto do catálogo da exposição. Nele discorre sobre a relação dos dois artistas com a imagem e diz-nos que «André Gomes sempre se aproximou das imagens, não sabemos se para alimentar a ilusão de que se poderia afastar delas. Calapez sempre se afastou das imagens, não sabemos se para alimentar a ilusão de que se poderia aproximar delas.»[1] Se em 1945 Bazin nos convidava a pensar a liberdade da pintura em representar-se a si mesma e a da fotografia em ser tão real quanto surreal, Pedro Calapez faz da abstração da pintura um corpo e André Gomes cria na liberdade de quem não só tornou a fotografia a sua própria musa, como a levou para lá do surrealismo.

As imagens-fotografias de André Gomes são composições oníricas de um mundo que existe para lá do mundo. Nas suas obras, encontramos um metadiscurso de quem através da fotografia, a arte dos espectros, do invisível no visível, compõe mundos surreais através do real. As camadas de corpos nas obras do artista fazem com que nos percamos nas várias possibilidades de realidade que nos são servidas e que tomemos consciência do surrealismo que habitamos e que nos habita a nós.

Numa exposição de dois artistas tão distintos, seria de esperar que encontrássemos obras de mundos diferentes, mas, na verdade, o que encontramos é a evidência de que o tangível e o intangível, o corpóreo e o incorpóreo, o real e o surreal existem na dicotomia da sua existência binária. Um só confirma a existência do outro. André Gomes e Pedro Calapez dialogam assim entre si sobre o mundo que partilham um com o outro e connosco também.

Seja dia ou seja noite, seja físico ou metafísico, seja pintura, fotografia, literatura ou cinema – pouco importa, as contas dão sempre certas. Não somos nunca nada mais, nem nunca nada menos que um corpo entre corpos.

 

[1] Calapez, Pedro; Gomes, André. (2021). Seja dia ou seja noite pouco importa. Lisboa: Museu Coleção Berardo.

Formou-se em Artes e Humanidades pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa especializando-se em Artes do Espectáculo e Comunicação e Cultura. Profissionalmente tem trabalhado em produção, direção artística e programação cultural, tendo já colaborado com vários organismos, entre eles, o Doclisboa, a European Broadcaster Union, a Plural Entertainment, o Teatro São Luiz e o Teatro do Bairro Alto. Atualmente trabalha como produtora e programadora cultural no Gerador, faz revisão de conteúdos para a Revista Fome e frequenta o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos na vertente de Cinema e Fotografia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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