Um passado que não passou completamente
Artista interdisciplinar e (de voz) indisciplinada, pronta a ser ouvida, este é o grito de Grada Kilomba onde se entrecruzam linguagens académicas e artísticas, o ponto basilar de uma obra que nos comunica sobre a história, a memória, o trauma, o colonialismo, o racismo. O passado já passado, inscrito e arrumado nos livros, nos monumentos e nos discursos, (ainda) enraizado, e demais, num Portugal que continua relutante em assumir, tampouco, o seu envolvimento.
“A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das interpretações que se criam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido, do sentido ao significado: o que resta é impacto que substitui impacto – eis a invenção”. [1]
Vivemos tempos que parecem exigir memória de tudo, ou talvez estejamos mergulhados numa obstinação com a cultura memorial – que fenómeno atual é este de delírio ou exaltação da memória? A memória, algo em nós inato, tão pessoal, reorganiza-se hoje numa esfera coletiva em expansão incauta e convulsa. Ou não fosse a mesma manifesto social, tal como a linguagem, capaz de sucumbir ao contexto do comunitário e da tradição, para lá da sua dimensão íntima e psicológica. Memória coletiva, apelidou-o Maurice Halbwachs. É assim, de tal modo, que o termo memória, como o diria Pierre Nora, alberga-se exclusivamente no presente alienado a qualquer outro tempo. Desconectado do passado, é débil, ou mesmo impossível, a capacidade de nos valermos de qualquer alicerce transato para projetar o futuro, tampouco caminhar no agora. De tudo se procurou fazer memória, a qual, por consequência, de imediato suplantou a história. Uma polaridade alterada, quando todas as afirmações e lampejos memoriais invadiram em força a história, os discursos, as leituras. Um perigoso compasso no qual se perdem factos históricos e/ou amenizam detalhes, ao subjugar todos os eventos cronológicos a modos de composição e recordação do passado inevitavelmente subjetivos, quando não passionais.
No entanto, uma cultura memorial é, inexoravelmente, de oblívio. Não há memória sem esquecimento: o êxtase de um, nunca evitará sinais do outro. Porém, se sobre o esquecimento não temos qualquer poder de decisão ou posse, a memória essa, individual, fruto dos nossos processos mentais, é o que nos resta como seguro e a salvo. Será?
Vivemos em eterna correspondência de associações, lembranças e visões que se movem, condensam e combinam, num rodopiar disperso e permanente, no qual a memória nunca será fixa, é o escudo protetor das perdas naturais impostas pelo tempo. Palavras, cor, forma… assim lacramos um tempo e um espaço. As memórias ficam-nos como imagens, desde o still à cena em movimento, a fusão da nossa memória subjetiva com aquela passagem real que, entretanto, se evaporou. “We rewrite memory as much history is rewritten”, ouvimos de Chris Marker, em Sans Soleil.
Parece uma emboscada. Se hoje proclamamos história baseados em memórias idas, e estas mais não são do que um conjunto volátil e falível, apreendido tantas vezes por coletividade inconsciente, onde é produzida a história universal? Em quanto dela podemos confiar?
Grada Kilomba tenta romper a cada trabalho esta membrana, para nos lembrar que história e memória são incompatíveis: a primeira é uma constelação de feridas que contamina a segunda, cuja sacralização em vários suportes, para lhes tentar reter o sentido ou o sentimento, poderá ser tão inglória nos dias de hoje, capaz assim de conservar apenas grandes equívocos.
O Barco/The Boat, um híbrido entre a escultura, a instalação artística e a performance, desembarcou em Lisboa, no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), no passado dia 3 de setembro. Comissariado pela 3.ª edição do BoCA — Bienal de Arte Contemporânea, manter-se-á assim, visitável e imponente ao longo dos seus 32 metros de comprimento, até ao dia 17 de outubro. Como o disse a própria artista, um jardim simbólico onde tanto se senta quem lembra o passado, como quem contempla o futuro. São 140 blocos de madeira queimada, dos quais 18 nos apresentam um poema multilingue e todos eles se dispõem de forma a mimetizar a silhueta da base de uma nau; desta vez, finalmente à superfície, deixando bem claro aquele que foi o transporte e a escravatura, durante 5 séculos, de milhões de africanos à mercê dos impérios europeus.
Como qualquer história individual, a universal é marcada pela composição que destinamos a cada capítulo, uma escolha entre o que preferimos manter e perpetuar, e aquilo que rejeitamos e sentenciamos ao silêncio. Não escolhemos esquecer, apenas lembrar. Grada Kilomba não esqueceu, e esta performance reergueu isso mesmo: as vozes, as ações e as presenças, tantas vezes recusadas e eliminadas pela história. Procurou-se a tangibilidade de um conhecimento para se volver mais físico e real; e, pela arte, deixá-lo penetrar-nos, mudar-nos. É o ritual que cria memória pela qual se adquire identidade e existência, afirmou-o a própria artista.
O barco em si, figura incontornável do imaginário fantasioso de um Portugal “descobridor”, é aqui realçado sob nova luz, reflexo da saudável vaga de ar fresco que emerge de um movimento artístico-cultural afrodescendente, que trilha caminho face à transparência de temas geralmente turvos. A arte contemporânea, a quem imputamos o fundamento crítico, apresenta-se como veículo catalisador e transformador entre a memória ancorada e acrítica do passado e a memória ativista e inquieta do agora.
Se o colonialismo ou a escravatura em Portugal ainda se contam de forma erroneamente heroica, enunciando um povo que abriu mundos no mundo, uma bravura até então imortalizada pela eloquência dos pedestais e de palavras nacionalistas, só com um reavivar da memória se pode lidar com o trauma e a crueldade do esquecimento coletivo e revertê-lo em narrativas que apaziguam a nossa consciência, com as quais nos identificamos e, assim, desejamos ver-nos representados no espaço público. Urge descolonizar língua e atitudes. Desmitologizar.
Contudo, sendo um mito uma narrativa poderosíssima à qual voltamos vezes sem conta como verdade absoluta, poderá esta ação contra o mito ter mais força do que ele mesmo?
A escolha de Lisboa não foi casual, a proximidade ao rio tampouco. O envolvimento e a participação, nas três performances, de diversas comunidades da diáspora africana, também não. Desta forma se deu maior amplitude e ressonância memorial à escultura. O poder da arte é o de recriar o espaço e o tempo; propor novas leituras sob o que nos rodeia. O Barco/The Boat traz-nos de volta a história que ficou lá atrás, para atiçar a nossa responsabilidade de querer ou não ponderar sobre o passado, refletir como queremos enfrentar o presente e dirigir o futuro. “A história só não se repete quando é questionada e interrompida”[2]; quando construímos novas memórias, quando as expressamos, verdadeiras, em alto e bom som.
Numa era tecnológica, onde a internet é o servidor global que armazena a memória universal, permanentemente disponível a todos e acessível de qualquer lugar, a capacidade de lembrar é-nos cada vez mais remota e marcha esse penoso caminho do arcaísmo, por supressão do seu exercício. Além disso, num mundo cada vez mais desumano, controlado pelos media e de produção de conhecimento em massa, estabelecem-se «sociedades-memória», termo que Pierre Nora empregou para nos alertar que herdamos o passado através de memórias reproduzidas coletiva e instintivamente. Ora, se a memória, tal como a história a partir dela descrita, nada mais é do que uma trama de linhas efémeras e falíveis, moldadas época a época consoante os anseios e as vontades da sociedade, então será sempre um fenómeno reconstrutivo. Este mesmo poder de renovação da memória cultural é a nossa inglória e a nossa esperança, tanto passível de converter factos históricos em fábulas, como o seu oposto; pois então, a força capaz de (re)construir narrativas do passado.
Pela proposta de reinventar a linguagem, as imagens e os signos, sejam eles visuais ou semânticos, Grada Kilomba, sem moralismos, apela com audácia à reformulação da história como tem sido contada até então, incita à responsabilidade e a novas memórias. A última performance decorrerá pelas 16h no próximo dia 17 de outubro, onde, pela terceira vez, se remará este barco contra a maré (até hoje aparentemente favorável) da normalização da violência e dos episódios mal contados dos “descobrimentos” imperialistas.
[1] Ana Hatherley, Cidade das Palavras, 1988.
[2] Grada Kilomba, em entrevista ao Ípsilon, Público, conduzida por Vítor Belanciano, a 3 de Setembro de 2021.