Entrevista com Barbara Piwowarska, diretora artística da Casa São Roque
Com uma programação cuja direção artística é assinada pela curadora e historiadora de arte Barbara Piwowarska, a Casa São Roque – Centro de Arte, recuperada e aberta ao público em outubro de 2019 como novo centro de arte do Porto, propõe revitalizar uma zona oriental da cidade, deixando a sua marca na agenda e no meio artístico contemporâneo. A entrevista que se segue a Barbara Piwowarska procura dar a conhecer as linhas orientadoras da programação expositiva da Casa São Roque e os seus principais desafios.
Mafalda Teixeira – Ao trabalhar como diretora artística e curadora da Casa São Roque, quais são os principais desafios no desenvolvimento de um projeto deste tipo a partir do zero, num espaço tão antigo e típico do Porto, mas não habitual na arte contemporânea?
Barbara Piwowarska – Este desafio é muito complexo e tem vários fatores. Não diria que é um projeto de raiz, como foi planeado pelo seu fundador, o colecionador privado Pedro Álvares Ribeiro (Peter Meeker) e a Câmara Municipal do Porto, há já muitos anos. Antes de entrar para a Casa São Roque, havia um edifício, um palacete em ruínas, a Casa Ramos Pinto, com reabilitação em curso. Todo o projeto estava profundamente relacionado com a coleção de arte contemporânea preexistente, formada ao longo de muitos anos, conhecida como Peter Meeker Collection, espalhada por vários locais e com o seu principal núcleo em depósito do Museu de Serralves. Eu diria que aderi ao plano e à situação existentes, como alguém vindo de fora de Portugal – sendo convidada a influenciá-la, a comentá-la e a preenchê-la com o programa de exposições internacionais, num diálogo com a coleção. Desde o início até agora, o que achei mais interessante foi termos entrado na casa de alguém e de a termos transformado num centro de arte contemporânea. A antiga Casa Ramos Pinto foi transformada na Casa São Roque. A casa mudou por completo a sua função e identidade. A mansão original foi construída em 1759 como parte da Quinta da Lameira, sendo utilizada como pavilhão de caça, típico das famílias abastadas portuenses. No século XIX, pertenceu à família de Maria Virgínia de Castro, que em 1888 casou com António Ramos Pinto, um dos mais conhecidos produtores e exportadores de vinho do Porto. Em 1900-1911, a casa foi remodelada pelo arquiteto português-parisiense José Marques da Silva, uma figura muito interessante que influenciou o processo de modernização do Porto. O edifício é um exemplo perfeito desta «modernização»: o ecletismo burguês na sua edificação, combinando divertidamente historicismos e estilos, do neo-empire à art nouveau, ou ao chalé ribeirinho francês, em mais de 20 salas. O programa de exposições tem necessariamente de interagir com estes espaços. É como trabalhar no «anti-cubo branco».
MT – Desde a sua abertura no final de 2019, foram apresentados dois projetos expositivos na Casa São Roque: a individual Inventória, de Ana Jotta, e o projeto coletivo Footnote 14: Angel of History. Se o amor vacui predomina na primeira exposição, na segunda surpreende-nos o horror vacui. Mas em ambos os projetos há uma intenção clara de dialogar com a arte contemporânea, a casa e a sua história. Enquanto curadora de ambas as exposições, era sua intenção brincar com estas antíteses – o cheio e o vazio – nos mesmos espaços?
BP – Sim, precisamente. As exposições serviram de contraponto entre si, apresentando dois encontros distintos com o interior burguês. Em 2019, tentei construir uma sequência de exposições para vários anos, criando uma «sucessão» que permitisse revisitar a identidade da Casa São Roque e que captasse também o momento da «transformação» – o momento da mudança do espaço vital para o centro de arte, e o que tal significa hoje. Era essa a tarefa das duas exposições: dialogar diretamente com a casa e testá-la de duas formas completamente diferentes. A inaugural foi uma interpretação totalmente artística e uma intervenção site-specific da artista portuguesa Ana Jotta, que mostrou as suas obras como objetos, usando para isso poucas coisas – «como se a proprietária tivesse saído ou ainda não se tivesse mudado». A segunda foi o meu próprio projeto, Footnote [Nota de Rodapé], com uma abordagem histórica «preenchida», mas utilizando a «metodologia das margens». A exposição comentou contextos locais, revelando muitas histórias transversais: da família de Walter Benjamin, do(s) seu(s) exílio(s), da sua fuga nunca completa por Portugal, da sua trisneta Lais Benjamin Campos ter nascido em Berlim, filha de pai brasileiro com origem próxima ao Porto, e muitas outras. Com este projeto, tentei contar histórias desconhecidas de Berlim, Paris, Lisboa e São Paulo, entrecruzando-se por Lourosa, Espinho e Porto. Os participantes incluíam os artistas, estudiosos e professores Aura Rosenberg, Chantal Benjamin, Lais Benjamin Campos, Marcelo de Souza Campos Granja, Patrizia Bach, Arno Gisinger, Frances Scholz, R.H. Quaytman, Joanna Zielińska, Jean-Luc Moulène, Jean-Michel Alberola, André Cepeda, Paulo Nozolino e Sismógrafo, bem como os autores João Barrento, Susana Camanho e Maria Filomena Molder. E, claro, vale a pena mencionar que, devido à pandemia, só conseguimos organizar duas exposições até agora. Cada uma acompanhada por uma publicação bilingue.
MT – Como serão as outras exposições?
BP – Os próximos projetos são consequência destes últimos. Decidimos fazer sempre uma exposição individual seguida por uma coletiva, incluindo em cada uma destas obras de artistas da coleção. Assim, a próxima será a exposição individual de Jean-Luc Moulène, Técnico Libertário, com inauguração a 16 de outubro, um artista francês que também participou em Footnote 14. Entrará em conflito com as funções essenciais das salas da Casa São Roque e testará uma nova dinâmica entre obras e espaços. Para depois desta exposição, estamos a preparar um projeto de grupo em colaboração com a City University of New York (CUNY), que iremos cocomissariar com Alaina Claire Feldman, diretora da Galeria Mishkin do Baruch College. Este projeto de investigação, intitulado The Studio and The House, irá desenvolver o paradigma do ateliê do artista (com casos de estudo históricos – como Kurt Schwitters ou Andy Warhol, mas especialmente exemplos contemporâneos confrontados com a experiência pandémica). Iremos investigar esta distinção «antiquada» entre o lugar onde a arte é produzida e aquele onde a vida é vivida.
MT – A exposição Footnote 14: Angel of History faz parte do projeto Footnote, que tem desenvolvido desde 2010, dedicado a fenómenos passados e presentes que exigem um comentário. O carácter específico da Casa São Roque influenciou a escolha do filósofo e escritor judeu-alemão Walter Benjamin para a décima quarta iteração do projeto?
BP – Sim, o edifício da Casa São Roque e o seu estatuto inaparente necessitava desse comentário, após a exposição inaugural Inventória, de Ana Jotta, diretamente site-specific, antes do desenvolvimento posterior do programa de arte contemporânea. Precisava de parar um pouco e perguntar: o que significa estar em casa? O projeto Footnote foi a melhor ferramenta para essa fase, pois baseia-se na investigação e nas «margens da história». Também encaixou bem em todo o plano: numa sequência mais longa de exposições dedicadas à noção de casa, um espaço antigo da vida burguesa. A décima quarta iteração de Footnote 14: Angel of History focou-se num diálogo com Walter Benjamin (nascido em Berlim, em 1892, e falecido em Portbou, em 1940), ao emergir como principal referência para a crítica da noção de intérieur bourgeois, tornando-se um grande veículo para comentar o passado e o presente do espaço. Benjamin continua a ser um especialista prominente na vida quotidiana da burguesia e da sociedade do alto capitalismo, como retratado nas suas Passagens, dedicadas a Paris, mas também no seu autobiográfico Infância Berlinense por Volta de 1900. Neste livro, composto por muitos textos curtos, o autor retrata a vida na viragem do século, período em que o edifício da Casa São Roque assumiu a sua forma atual.
MT – Para a Footnote 14, R.H. Quaytman criou um painel de estuque intitulado São Roque, que inclui a reconstrução de uma roseta do teto da casa, fruto da colaboração da artista com uma oficina de estuque na Maia. A releitura de obras e peças decorativas da Casa São Roque por artistas contemporâneos nacionais e internacionais, a promoção de contactos e colaborações entre estes com oficinas e artesãos locais, é algo que a Casa São Roque, enquanto novo espaço cultural da cidade, tem interesse em desenvolver?
BP – Estamos a fazer comissões e a produzir novas instalações site-specific para cada exposição, convidando artistas participantes para colaborações locais, e para trabalhar com produtores locais. Para a sua exposição, Ana Jotta criou Dormir – escultura-placa permanente em bronze para o jardim ao lado da casa, no Parque São Roque, peça generosamente doada por ela à coleção. A obra foi concebida na Fundição Cosme, em Canelas de Baixo, Vila Nova de Gaia, com a qual Jotta trabalhou durante muitos anos. R.H. Quaytman desenvolveu uma colaboração com a Revivis – uma renomada empresa de conservação na Maia, cuja oficina de estuque é muito boa. A mesma empresa fez a renovação dos estuques totalmente destruídos na Casa São Roque no ano de 2019. Curiosamente, Quaytman participou na primeira Footnote da série: Footnote 1: Phantom Limb, em Varsóvia, bem como noutras iterações, incluindo Footnote 6: As Model, em Nova Iorque. O seu painel de estuque São Roque foi pintado em cores que incluíam o tom rosa da camélia que encontrou no jardim, e uma secção preta e geometricamente triangular, algo típico das suas pinturas. Não diria que o trabalho final é um exemplo artesanal, mas mexe com o artesanato de forma brilhante e lúdica. A roseta foi concebida originalmente pela oficina da família Meira por volta de 1900.
MT – O aparato arquitetónico e decorativo da Casa São Roque torna-a exemplo marcante das construções urbanas e de elite na sociedade portuense. Ao estabelecer-se como património e memória da cidade, de que forma é que a programação artística da Casa São Roque, enquanto centro cultural, contribuiu para a revitalização da zona oriental do Porto e qual a recetividade da população local ao programa desenvolvido?
BP – Fazemos parte de um processo mais extenso e de um plano municipal mais amplo de ativação e gentrificação cultural desta parte da cidade. Espero que possamos contribuir profundamente para isso. A Casa São Roque está à margem do coração turístico portuense, no bairro operário de Campanhã, que está agora a ser intensamente transformado. Estamos perto da Estação de Porto-Campanhã, do Estádio do Dragão, e também da fronteira com o Bonfim. O nosso público principal é maioritariamente composto por habitantes locais, que conhecem o Parque São Roque e notaram que o edifício amarelo (antiga Casa Ramos Pinto) foi renovado e aberto em 2019 como centro de arte, após ter estado em ruínas desde os anos 70. As pessoas gostaram e comentam-no quando visitam o local. O edifício da Casa São Roque inclui também uma cafetaria com acesso a um grande jardim, onde é possível ler livros relacionados com as nossas exposições e a coleção. Temos também visitantes internacionais, maioritariamente do mundo da arte, e recentemente alguns turistas. Há um forte e permanente grupo de visitantes locais, que encapsula todas as gerações: famílias com crianças, idosos, adolescentes de escolas secundárias e estudantes. Footnote 14 foi interpretada para todos eles – como projeto educacional – e acessível também àqueles que desconhecem Walter Benjamin. A nossa equipa serve de guia e interage com cada visitante, explicando o projeto. Além da colaboração permanente com a Universidade do Porto (em particular, com a Faculdade de Belas-Artes) e a Escola Superior de Educação, nos últimos dois anos desenvolvemos uma colaboração estreita com a Fundação Marques da Silva, localizada na contígua Praça do Marquês de Pombal, e com o Agrupamento das Escolas do Cerco, com o qual coorganizamos um extenso programa educativo para as crianças do bairro.