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Algumas notas sobre partir do fundo e trazer ao de cima: Entrevista com Diogo da Cruz

Foi selecionado para a residência artística da UmbigoLAB – essa no âmbito da colaboração que a Umbigo tem vindo a desenvolver com a ArtWorks desde 2019. Depois de um inevitável adiamento, a fábrica de Amorim pôde finalmente acolher Diogo da Cruz e o projeto que havia apresentado em 2020. AXECIDYR não ficará por aqui, mas uma parte significativa do trabalho então realizado estará em exposição no Forum Arte Braga até 23 de novembro. É partir do fundo e trazer ao de cima – looking up from underneath, assim o diz.

Carolina Machado – Gostava de recuar um pouco: quando e como é que começou o projeto que está na base desta exposição?

Diogo da Cruz – O projeto – ou a primeira ideia – veio de novembro ou dezembro de 2019. Estava a desenvolver um projeto ligado a uma pesquisa de física experimental no fundo do oceano e comecei a ficar muito interessado por essa parte do mundo. Tento sempre procurar zonas onde o conhecimento humano e científico não chegou – ou onde não tem explicações – e olhar para esses sítios como lugares de especulação e possíveis mitologias. Portanto, sim, essa zona do mundo – sobre a qual conhecemos tão pouco – começou a entusiasmar-me. Através de certas coincidências, conheci a música dos Drexciya e comecei a gostar muito da mitologia que eles criaram, a tentar perceber como é que poderia trabalhar sobre esse mito…

CM – O tal mito afrofuturista, do qual já tínhamos falado [a propósito do artigo para a Umbigo #75]?

DC – Exatamente. Os Drexciya são uma banda de Detroit. Estiveram ativos nos anos 1990, muito prolíferos no mundo da música eletrónica, bastante conhecidos… Fazem parte de uma cena musical de Detroit que é maior do que eles. Criaram uma mitologia muito forte, segundo a qual os Drexciyans são descendentes dos escravos que foram atirados dos barcos e que assim morreram na travessia do Atlântico. Criaram [o mito] a partir deste evento histórico: uma civilização que vive no fundo do mar, que é tecnologicamente mais evoluída que a dos humanos e que faz a estranha música que eles [os Drexciya] tocam. Gerald Donald, um dos elementos dos Drexciya, refere-se num outro projeto musical [Arpanet] à tecnologia e ao desenvolvimento da Internet logo no início dos anos 2000, com especulações sobre como iríamos viver e trabalhar a partir de casa: The Analyst, Wireless Internet, Illuminated Displays… Acho muito interessante isto de terem sido como que visionários, [terem previsto] o que iria acontecer no futuro. Pronto, fiquei mega fã do trabalho dos Drexciya. Foi talvez o starting point deste projeto e comecei a tentar ir buscar mais referências e perspetivas sobre como trabalhar [esse mito].

CM – Foi a partir da música – ou de um álbum [dos Drexciya] em particular – que surgiu o teu interesse pela matéria e que vieste ao encontro das leituras, das referências teóricas… e até das aproximações científicas, não é?

DC – Sim. Talvez mais filosóficas… Nessa altura, comecei a ler mais a Astrida Neimanis, vi uma apresentação dela online e fiquei muito entusiasmado com as filosofias que usam a água – não quero dizer como metáfora! – como ferramenta para pensar o humano, para ligar o humano ao não-humano, o humano ao outro humano, [ao humano] que está ao nosso lado. Algo que nos conecta de uma forma materialística e inegável. É muito interessante como [a água] pode ser trabalhada filosoficamente. Nesse campo entre o humano e o não-humano, há trabalhos como o de Donna Haraway, que já vinha de trás e que também aqui me influenciou, ou o de Édouard Glissant, [que versa sobre] o pós-colonialismo… e também ele usa metáforas para falar sobre as formas como nos podemos relacionar. Estas influências foram alimentando o meu projeto.

CM – Surgem depois algumas referências à exploração dos minérios: o equipamento, toda aquela artilharia que vens evocar mais à frente. Creio que te referes ao lítio, por exemplo. É aí que começas a aproximar-te de uma visibilidade… uma visibilidade tecnológica, vinculada à tecnologia?

DC – Sim. A exploração dos minérios no fundo do oceano era algo muito presente na minha cabeça. Tinha visto os projetos dos Inhabitants sobre a prospeção no fundo do mar. Têm um episódio sobre a exploração mineira na região dos Açores e [o tema] já estava na minha cabeça há bastante tempo quando pensei sobre uma possível civilização: como é que os humanos iriam encontrá-la, onde é que o choque iria acontecer… e pensei em criar esta história ficcional, em que os humanos começam a explorar os minérios no fundo do mar e entram em conflito com essa civilização.

CM – Lembro-me das primeiras peças que fizeste em vidro, ainda antes da residência, com aquelas formas orgânicas, muito delicadas, que remetiam para as criaturas subaquáticas dos registos [em vídeo] da expedição. Foi com as experiências em vidro que esta tua ideia começou a materializar-se?

DC – Sim. Acho que foram as primeiras. Já não soprava vidro há dois ou três anos. Foi lá [na Akademie der Bildenden Künste München] que aprendi. Nesse momento, estava ainda tudo em aberto e surgiu a oportunidade de me sentar a fazer lampwork. É um trabalho mais detalhado, mas também com sopro. Tive a ideia de ir buscar uns seres marinhos, que são quase transparentes, quase totalmente feitos de água, mas muito perigosos para os humanos. A imagem da medusa e de certas alforrecas, que podem até ser mortais, surgiu como um símbolo perfeito. Representá-las em vidro parece quase uma antítese: tratar este animal – que é mole, transparente e perigoso – como uma coisa muito frágil, em vidro… tem sido um problema para transportá-las e montá-las, mas também um desafio interessante. Foi assim a primeira… manifestação material.

CM – Quando estavas a trabalhar em vidro, apareceram as peças de cobre, os vestígios de uma sociedade industrial, algo assim…

DC – Na verdade, as primeiras montagens com cobre foram feitas a partir de restos. Vá, não são restos: são modelos da minha peça anterior, [partes de] uma máquina que reutilizei neste projeto. Foi uma forma de passar de um projeto para o outro, começar a fazer rascunhos…

CM – Parece-me que, neste caso, fará sentido largar da parte para o todo: não do geral para o particular, mas do particular para o geral. Refiro-me à dimensão particular ou particularizante do projeto… das partículas, digamos. Entre as muitas referências aqui implicadas, surge a diatomácea: um microrganismo unicelular que habita uma parcela significativa do território subaquático. Creio que é a partir desta forma de vida que começas a engendrar a forma dessas criaturas, dessas espécies ditas desconhecidas… e a descobrir a aparência ou a plasticidade da tal civilização. Estou certa?

DC – Foi essa imagem! Queria representar esse microrganismo, que é muito pequeno, unicelular, cujas paredes celulares são de sílica. Queria representá-lo em grande, em ferro, com uma aparência muito mais agressiva, porque, de facto, esse microrganismo tem uma grande agência sobre nós. Tinha um desenho, que fiz a partir de uma fotografia microscópica…

CM – Sim, o desenho vetorial!

DC – Exatamente. Escolhi uma espécie de diatomácea [Thalassiosira], que desenhei vetorialmente e foi cortada na altura da minha chegada. Portanto, eles [os técnicos da ArtWorks] já tinham visto o desenho antes de eu chegar. Era uma peça que já tinha em mente e com a qual fiquei muito satisfeito. Cheguei a pensar em fazer uma série, mas foi tanto trabalho… uma já está feita! Esta peça trouxe algo de muito especial. No último dia da residência, fiz uma filmagem debaixo de água e [a peça] começou a assumir um caráter… de personagem principal.

CM – Quando aparece no vídeo, está já com alguma ferrugem, tem já uma dimensão temporal, há tempo nela… qualquer coisa que vem de algum lado, embora não consigamos situá-la.

DC – Pois, a ferrugem! A ideia era trabalhar a partir do entulho, com o material excedente. Estava lá [nas instalações da ArtWorks] uma chapa já deteriorada, bastante fina, que não era, de facto, muito útil para a fábrica… e acabei por usá-la, gostando também da ferrugem. O mais engraçado foi que [a peça] esteve debaixo de água, tirei-a de lá, terminei a residência, ficou na ArtWorks… e agora está muito diferente do que era, porque enferrujou bastante. Depois de um dia em água salgada, está agora totalmente castanha escura, toda oxidada, com restos de algas… tem essa referência temporal.

CM – Sim, parece ter uma história.

DC – Exato.

CM – Lembro-me também de uma peça a fazer lembrar um réptil, com as patas assim… talvez uma outra espécie dessa civilização?

DC – Foi uma clara reação aos restos da fábrica, também a pensar no poder dos anfíbios. Os anfíbios são as espécies visíveis que conseguem mostrar-nos aquele passo do mar para a terra, que estivemos no mar e passámos para a terra… [esta peça surge] a pensar que até podíamos ser mais anfíbios e começar a viver mais na água para percebermos o quão dependentes estamos dela.

CM – E para além das esculturas…

DC – Fui trabalhando as esculturas, mas havia, claro, um background conceptual que queria trazer… queria adicionar um certo significado, um pensamento a estes seres que estava a criar. Quando surgiu o convite para a exposição, pensei em juntar às peças que estava a desenvolver um vídeo onde eu pudesse introduzir as ideias da narrativa, de como tudo começou, as razões pelas quais estou a olhar para o mar, para o fundo do mar, a contar uma história, a fazer uma especulação sobre o que é que esses espaços podem simbolizar. A ideia [do vídeo] era também falar sobre a poluição dos oceanos, sobre como a exploração dos minérios no fundo dos oceanos parece replicar e perpetuar a exploração dos recursos naturais, que está ligada ao próprio projeto colonialista. Havia assim uma complexidade para contar e achei pertinente dar a hipótese ao visitante de ver as esculturas, assistir ao vídeo e, na volta, achar [nessas esculturas] um significado diferente.

CM – Este vídeo remeteu-me para umas leituras do ano passado: Donna Haraway, Rosi Braidotti, por aí. Diria que o teu trabalho está muito próximo daquilo que se poderá designar por «práxis afirmativa». Num único projeto, consegues implicar todos ou quase todos os problemas com que hoje nos confrontamos: ambientais, ecológicos, sociais, políticos, económicos, etc. Se atendermos às palavras que vão surgindo entre os planos, [a peça audiovisual] afirma-se como uma ficção especulativa a roçar o manifesto. Dos teus trabalhos, é talvez aquele onde a intenção acaba por pesar de forma mais evidente ou consequente. Concordas?

DC – Sim. Acho que foi o projeto em que tive mais tempo para maturar a ideia, para perceber o que queria dizer… e o facto de ter colaborado com outras pessoas deu-me força para ser mais assertivo. Colaborei com Fallon Mayanja desde o início, tentando responder à peça de som [da sua autoria] na edição do vídeo. Acabou também por atuar, com uma personagem adicionada à última da hora… e que, em princípio, vai aparecer no futuro [deste projeto]. Aidan é um apontamento da alternativa: representa um grupo de ativistas que parece ter uma alternativa ao diálogo da ecologia…

CM – Que se questiona sobre o potencial dessa alternativa?

DC – Sim. Durante o nosso diálogo, estávamos a falar sobre como o discurso dos recursos renováveis é um pensamento ainda ocidental, mas há muitas pessoas [espalhadas pelo mundo] que conhecem bem os limites dos recursos, que os usam, que sabem viver dentro desses limites… O mundo ocidental quer manter os seus standards de vida e vê a ecologia como uma hipótese de evolução tecnológica. A resposta aos problemas ambientais passa pela tecnologia. Com esta personagem, [o vídeo] está também a desconstruir a ideia de que a tecnologia vem para nos salvar.

CM – Tenho vindo a refletir sobre esta questão, especialmente no que respeita ao trabalho de um grupo de jovens artistas a operar atualmente, embora não apenas em contexto português. Enquadrarias este teu projeto e a tua prática artística sob uma perspetiva pós-humanista ou pós-antropocêntrica? Estamos a começar a perceber que o indivíduo – um indivíduo homem, masculino, branco – não é o centro do mundo?

DC – Hmmm… esta agora deixou-me a pensar! Na prática artística ou… em coisas que eu vejo acontecer? Vi uma evolução interessante ao longo dos meus estudos, principalmente na Alemanha. Quando cheguei, havia um grupo de pensamento da Goldsmiths que falava do speculative realism. Foi uma onda também vivida pelos artistas, uma onda filosófica que enquadrava várias dimensões artísticas. Com Mark Fisher, veio uma onda mais crítica… e também achei interessante como isso virou.

CM – A crítica a uma luta anticapitalista que surge voltada sobre si, que não consegue sair de si…

DC – Exatamente. O accelerationism era um dos movimentos: a vertente que acreditava que o capitalismo tinha de acelerar para se destruir a si mesmo. Depois, surgiu um grupo com ideais quase de extrema-direita, outros com uma posição socialista… Vi muitos trabalhos artísticos através dessa lente, que acabou por evoluir no sentido das object-oriented ontologies – olhar para um lado mais materialista do mundo, pensar que o nosso material é o que nos faz sujeitos – e [a vertente em questão] começou a dispersar um bocadinho. Foi interessante. Foi uma teoria que surgiu no ocidente, mas [percebeu-se que] há muitas outras culturas com uma perspetiva animista do mundo, em que uma pedra – ou um ser não-humano – tem quase tanta agência, tanto poder de decisão como um ser humano. Muitos artistas começaram a olhar para esse lado mais animista e a tentar descentralizar o foco do ser humano.

CM – A ideia de que é preciso sair do discurso do homem: não apenas do homem masculino ou do homem branco, mas também do homem humano, do homem com H grande… da Humanidade, no fundo?

DC – É isso que quero trazer para esta minha peça audiovisual: quero muito trabalhar objetivamente ao nível das nossas partículas, dos nossos constituintes… [sobre] o que partilhamos com as outras coisas. Se for ao cerne ou à partícula singular que me constitui, não há assim tanta diferença [em relação ao que está] à minha volta. É também parte do que eu sou e está sempre a entrar: o que respiro é tanto eu como o meu sangue, o meu sangue é água, vou bebendo, vou trocando… é uma ideia muito fácil de abraçar, não é? A ideia de que o ser humano não está delimitado pela pele. Na verdade, somos como qualquer organismo: dependemos do exterior, [do lugar] onde estamos, de todos os outros seres… e os outros passam a ser muito relevantes nas nossas vidas.

CM – Estavas a falar do teu percurso académico nos últimos cinco anos. Consegues rever-te na figura do artista-investigador?

DC – Se me perguntasses há uns meses, diria que sim. Tenho pensado sobre os métodos de investigação, o que significam… e é interessante quando se pensa na prática artística, porque a investigação é uma coisa muito abrangente. O que é bom, não é? Ao entrar no meio académico – dos mestrados, dos doutoramentos, dessas coisas – e [refletir sobre] os métodos de fabricação de um conhecimento típico, do nosso modo de ver a ciência e de validar a realidade… lá está: validar e replicar estes métodos através da prática artística acaba por parecer desnecessário. Acho que essa palavra [investigador] começou a carregar, para mim, um significado muito diferente e muito ligado à academia. Começo a ser mais crítico, embora perceba o contexto em que a referes.

CM – Parece-me que não separas propriamente a tua prática artística de todos os teus outros interesses, nomeadamente do ponto de vista académico.

DC – Sim, é verdade. O que desenvolvo a nível académico é a minha prática artística e tudo o que leio acaba por ter uma componente muito visível, mas não produzo investigação. Mesmo com o meu trabalho de assistente na Akademie, tento desafiar a própria fundação. Não tento criar conhecimento nesse sentido [académico] ou transmiti-lo como uma bagagem pronta. O que tento é transmitir influências, outras coisas. Portanto, acho que a minha prática artística é a minha investigação.

CM – Por fim: até onde prevês alargar este projeto e o que é que se avizinha já de seguida?

DC – Começo a ver esta peça de vídeo como um prelude, como o primeiro episódio de uma série. A ideia é voltar a trazer estas personagens em peças futuras, claro! Se calhar, tentar um segundo episódio. Estou muito aberto no que respeita às temáticas, muito ansioso por trabalhar e por outras oportunidades que possam surgir. Ando a pensar na próxima exposição, que será uma exposição perto de Munique… e em como falar sobre os oceanos no meio da Europa, no meio do continente europeu. Ali, onde os oceanos estão tão longe! É pensar como os oceanos influenciam as migrações, algo que influencia este continente de forma tão profunda. Estou a tentar arranjar uma perspetiva sobre como trazer este projeto para o centro da Europa.

Carolina Machado (Lisboa, 1993). É investigadora doutoranda do Instituto de História da Arte na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Frequenta o Doutoramento em Estudos Artísticos - Arte e Mediações da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo concluído o Mestrado em Estética e Estudos Artísticos - Arte e Culturas Políticas e a Pós-Graduação em Curadoria de Arte pela mesma instituição, quando já titular da Licenciatura em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desenvolve atualmente o seu projeto de investigação: «Genealogia da prática derivativa: Estudo sobre o sistema de produção, mediação e receção da obra derivada na cena artística emergente em contexto português (2015-2025)» vem proceder ao trabalho iniciado em «Do gesto transgressor sob a lógica estetizante da cena pós-contemporânea: Uma abordagem à prática artística emergente em contexto português (2016-2019)» e visa perscrutar a ascendência de uma vocação derivativa sobre o gesto criador, progressivamente alimentada pela mais jovem geração a operar nesse recorte espaciotemporal.

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