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Entrevista a Marta Mestre, curadora do CIAJG

O Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) entrou recentemente num novo ciclo com a chegada da curadora Marta Mestre. Aliada à constante missão de preservação, divulgação e, pode dizer-se, reabilitação da obra de um importante artista português, junta-se uma visão refrescante (e urgente) sobre a arte em Portugal. É já assinável a força destes novos ciclos de programação por via da escolha de artistas menos vistos em instituições nacionais, quer por serem jovens quer por serem artistas internacionais. O importante percurso de Marta Mestre no Brasil, poderá revelar-se um fator diferenciador, mas é sobretudo o olhar curioso e desinteressado nas “exposições-do-costume” que prometem tornar Guimarães uma paragem obrigatória para quem quiser, realmente, indagar sobre novas narrativas e explorações visuais.

Durante o verão prestei uma visita ao CIAJG quando ainda decorria o primeiro ciclo Nas Margens da Ficção. Entre uma visita-conversa sobre José de Guimarães e sobre as exposições então patentes, Marta Mestre apresentou a sua visão sobre o presente e o futuro do museu.

 

Marta Mestre – As décadas de 60 e 70 foram períodos muito importantes em termos de experimentação e José de Guimarães é um artista ímpar nesse sentido, por outro lado, estabelece também um diálogo com África que é inédito em Portugal. Aquilo que me interessou para iniciar o diálogo sobre ficção foi o fragmento [de uma serigrafia], uma tesoura: a mulher tem uma tesoura com que corta e cola a realidade. Trata-se do processo artístico do real como uma colagem, por outras palavras, da ideia de montagem cinematográfica. Isto coloca-nos de imediato num papel ativo: não só como observadores passivos, mas também como produtores de significados. O processo surrealista é muito importante para José de Guimarães. A herança da linguagem surrealista em que significado e significante flutuam. Aqui não estamos a operar numa lógica do real, estamos a operar numa lógica de transformação do real e, portanto, esta obra é uma espécie de mote para guiar o visitante.

Francisco Correia – Confesso que fiquei desde logo entusiasmado com a ideia de ficção. Houve uma altura em que parecia que a ficção não chegava para a arte e que esta precisava de ligações diretas com os assuntos do “real”. Como se a capacidade de fantasiar não fosse, em si, capaz de questionar e oferecer novas possibilidades ao mundo em que vivemos.

MM – Penso que houve um momento em que a ficção entrou em crise. No entanto, existe paralelamente a ideia de que o discurso histórico é insuficiente. É falho, não conta o real, não narra o real. Curiosamente tivemos aqui [no CIAJG] uma conversa bastante interessante com Luís Trindade, um historiador, que diz que também eles utilizam as mesmas técnicas de escrita que os escritores de ficção. Portanto a manipulação da técnica de escrita é utilizada tanto no território supostamente científico como no território supostamente literário. Eu penso que é a partir daqui que devemos voltar a olhar para a história e entender qual é a sua relação com a realidade e com os factos. É algo que merece realmente ser novamente questionado.

Aqui, Nas Margens da Ficção, o ponto de partida é essa função ativa da manipulação da realidade, visível desde logo na primeira sala do Alfabeto Africano. Esta sala está assim desde o início. É a escolha para iniciar o percurso do museu e alberga o trabalho que José de Guimarães desenvolveu entre 1970 e 1974, uma amálgama sintética da imagética africana e europeia. É também notório o eco da poesia experimental praticada entre os anos 60-70, E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherly, Salette Tavares, etc. Daí, optámos por retirar um dos elementos do Alfabeto e inserimos uma tampa de panela dos povos Cabinda, no norte de Angola. Nesta tampa de panela contam-se histórias, é uma tradição que penso que está em vias de desaparecimento, mas que tinha a ver com contar narrativas e provérbios entre as pessoas da comunidade. Por exemplo: “Tens que trazer mais comida para casa” ou “Amanhã vai chover e assim não haverá festa”. Este tipo de narrativas sintéticas e ideogramáticas inspiraram diretamente José de Guimarães e achámos por bem trazer este elemento até numa função pedagógica.

FC Desconhecia este trabalho do Alfabeto Africano.

MM – É muito interessante porque remonta à década de 70, isto é, antes da revolução. José de Guimarães vai por duas vezes a Angola, participa na Guerra Colonial enquanto operador de comunicações e na segunda viagem quando integra a Comissão de Serviço começa realmente a interessar-se pelo país. No entanto, apenas muito mais tarde começa a colecionar Arte Africana. O seu impulso de colecionador só começa na década de 80 e todos os objetos que temos aqui e que ele coleciona não foram comprados em África, ele depois de Angola nunca mais foi a África. A sua coleção foi comprada em Bruxelas, Paris ou Lisboa. “Quais são os desafios desse olhar colecionista de objetos extraeuropeus?” Isso é algo que o Museu tem de enfrentar e merece também ser percorrido em debates que esperamos vir a fazer em breve.

FC Embora a Marta tenha entrado há pouco tempo para o CIAJG, é possível reconhecer-lhe a intenção de renovar a assiduidade do público, mas também dos artistas que integram as exposições temporárias. Em Portugal durante muito tempo houve uma geração de artistas enraizada que ia rodando pelas instituições. Para renovar o museu, é preciso também renovar a programação?

MM – Sim, mas por exemplo no campo da música, as pessoas relacionam-se com os músicos de uma maneira diferente, pois podem ir ao concerto, mas também terem o disco e consumir. Na arte isso não acontece e as pessoas não têm essa proximidade com os artistas, temos de criar essa proximidade. Elas querem ver o artista e para ouvir a palavra dele têm que entrar no museu. A nossa ideia passa por começar com os laboratórios vivos onde os artistas transmitem em viva voz o seu trabalho. Fizemos isso com Fernão Cruz e com os alunos da licenciatura de artes visuais da universidade do Minho e foi fantástico, eles entenderem o que foi necessário para Fernão entrar no meio e fazer exposições. É uma passagem de testemunho. Ouvi-lo da voz do artista é diferente de ouvir da voz da curadora ou de quem quer que seja. O museu tem de ter esse lado polifónico, de que falo muitas vezes, e o artista tem de ser central.

FC – Gostaria ainda de salientar a proposta de internacionalização, no sentido de abrir as portas do CIAJG, parece-me um trabalho importante. Para sair um bocadinho do canto da Europa, é preciso abrir a porta.

MM – Para nos singularizarmos enquanto projeto internacional, precisamos de falar de coisas locais porque hoje em dia com a ideia de blockbusters e com a homogeneização, tudo se parece com tudo. Um Museu para se tornar diferencial tem de conseguir olhar de uma maneira interessante para o local onde se encontra. É indispensável conseguir cruzar temas e questões do território minhoto, rico em produção artística espiritual e religiosa. As suas contradições, ou o facto de se ser uma cidade que evoca a questão de nacionalidade: o que é isto de sermos o berço da nação, com cuidado e respeito, mas também tocando no assunto. Por outro lado, temos uma coleção com forte componente africana e há aqui um lado que conta essa história. Somos muito ricos em questões e potencialidades de reflexão, temos de o comunicar, e isso passa bastante pela palavra dos artistas e da maneira que eles podem falar.

 

O CIAJG inaugura a 2 de outubro o segundo ciclo de exposições temporárias, desta vez com o nome Ficcionar o Museu.

Francisco Correia (n. 1996) vive e trabalha em Lisboa. Estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e concluiu a Pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem escrito para e sobre exposições. Simultaneamente desenvolve o seu projeto artístico.

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