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No Reino das Nuvens: Os Artistas e a Invenção de Sintra no Museu das Artes de Sintra

Em dezembro de 1995, Sintra foi classificada como Património Mundial pela UNESCO, na categoria Paisagem Cultural. A exposição No Reino das Nuvens: Os Artistas e a Invenção de Sintra, que se organizava para a comemoração de vinte e cinco anos de um acontecimento político-cultural e deveria ter sido inaugurada em 2020, teve o seu planejamento reorientado para 2021 em função das condições atípicas que viemos a compartilhar como seres humanos nos últimos tempos. Um tanto simbólico esse adiamento pois, como bem diz na apresentação do catálogo o curador Victor dos Reis, ele é “demonstrativo da imprevisibilidade da vida”. No entanto, é da natureza do imprevisível também a chegada de gratas surpresas. Exposições comemorativas passam sempre pelo risco de responder unicamente a demandas protocolares, a optar por uma abordagem sem grandes perigos, o que definitivamente não é em nada o caso desta. A abrir-se como um metaespaço, o que encontramos ao caminhar pelas salas do Museu das Artes de Sintra é tão vertiginoso e aberto quanto a paisagem que antecede a nossa entrada.

Poderíamos dizer que a condução do espectador se mantém segura na sua estrutura narrativa ao separar o percurso em seis núcleos (ou cinco capítulos e um epílogo) que guardam uma coerência interna, a respeitar também a arquitetura que envelopa o discurso. Mas o tom da narrativa é poético e sugere a quem a lê que saia constantemente da rota central e se perca nas relações que se estabelecem dentro dos núcleos ou que cintilam aqui e ali como lembretes da sua unidade, a construir cada um a sua própria imagem de Sintra. É como estar num jardim ou labirinto por onde caminhamos, com vontade de nos perder, e se a própria cidade não bastar como inspiração para esse devaneio caminhante, lembremo-nos do Jardim de Veredas que se Bifurcam, de Jorge Luís Borges, a quem Umberto Eco atribui a metáfora na qual um bosque é também um jardim. “Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção.”[1]

Essa vibração poética se sente nos títulos dos núcleos que, ao mesmo tempo em que se agarram à paisagem ou à natureza para construir os seus sentidos e conceitos, não deixam de considerar esses conceitos na condição das relações entre eles, mantendo vivo um eixo vertical mesmo que não consigamos tirar literalmente os pés do chão para andar. Se a cada núcleo parecemos estar sempre um pouco mais próximos da terra, a descer devagar dos céus do primeiro momento, acontece de pousarmos com tamanha delicadeza que o olhar para o futuro que sugere o último núcleo é tomado da fragilidade de uma bruma, ou mesmo de humidade, mais que do orvalho. A abertura com duas obras de grande porte, uma de frente para a outra, funciona como epígrafe: a escultura de Rui Chafes e a pintura de Michael Biberstein marcam a verticalidade e o desafio gravitacional, situando desde logo o terreno do imaginário da exposição em algo que resvala no conceito de sublime. Um sublime tal como a historiadora Maria de Aires Silveira refere-se no primeiro texto do catálogo da exposição, ao retomar a impressão de maravilhamento e mistério que sempre fascinou os artistas que passaram pela região, a moldar um “perfil sintrense”, bastante sublinhado no século XIX. E ao mencionar a obra de Biberstein, é interessante como duas outras obras de sua autoria, sempre tomadas de transparências, aparecem em outros momentos como um fio de Ariadne que, neste caso, nos mantém presos ao labirinto.

Neste circuito encantatório da exposição, uma questão importante é a decisão de fazer conversar obras de tempos diferentes e a não hierarquização de qualquer técnica ou linguagem, a permitir que mesmo objetos arqueológicos ganhem um status diferente em meio a conversa. A porosidade na passagem quase imediata do olhar, por exemplo, do Globo Celeste de Christopher Schissler, do século XVI, para um cianótipo de Ana Caria Pereira, de 2019, atualiza a mitologia gravada no globo ao mesmo tempo em que as imagens mais recentes ganham ressonância histórica. Da mesma maneira, é rico o paralelo entre um óleo de Alfredo Keil, de 1879, e as fotografias de Nuno Teixeira Maya, de 2009, em que o caráter fotográfico e moderno da pintura acaba por saltar aos olhos. Ou, o que deixa o espectador no mínimo apreensivo, a coluna romana tombada às proximidades da obra One Million (2019-2020) de Fábio Colaço, que nos levanta a questão sobre a que damos de fato a devida importância.

Algumas das decisões referentes ao uso do espaço e o posicionamento das obras são lapidares. A correr o risco de ser injusto com outros pontos da exposição, ressalto dois momentos que são acertadamente rigorosos. Um deles é a sala referente ao penúltimo núcleo, Da bruma, da névoa e do orvalho, com as obras de Pedro Cabrita Reis. A escolha primordial pela iluminação natural para a obra de Reis, nomeadamente a pintura de quase seis metros de extensão, posicionada próxima à entrada de luz, proporciona a possibilidade de uma infinidade de momentos únicos. A obra muda com o nosso andar, com o nosso distanciamento, com a luminosidade que adentra o espaço, a ser outra em poucos instantes, sem que sejamos capazes de observar a mudança, mas constatá-la. O texto de sala cita um verde intoxicante da paisagem de Sintra, toxidade que não é diferente do feitiço que nos lança a pintura de Reis, uma obra furtiva, que pede atenção e que nos engana, tal como a natureza.

Um outro momento importante, e mesmo emocionante, é a passagem do primeiro para o segundo núcleo, Dos ventos, das águas que correm e do mar, com a obra de Ângela Ferreira, Hotel da Praia Grande (O Estado das Coisas), de 2003. Quem olha a imagem pode não saber que fora do enquadramento da fotografia, quase no contracampo da imagem, ou seja, fora do que vemos, mas não no nosso ponto de vista, está o Oceano Atlântico (uma vereda escondida desse labirinto). A pista para o enigma é dada pela parede que segue depois da obra de Ferreira, com a fotografia Cabo da Roca, de Thomas Joshua Cooper. Mas esse aceno para o que está fora da imagem é também um aceno para o que está fora da narrativa da exposição, como um lembrete de mal-estar, uma desconfiança que já estava presente mesmo nos românticos diante daquilo que se costuma chamar civilizado. O hotel da fotografia de Ângela Ferreira (fotografia que contém referências simbólicas do 25 de Abril) recebeu uma parte dos “retornados” após a descolonização portuguesa da África, e a imagem perturba as noções de utopia que pudessem querer se prender a esse universo fantasmático de Sintra.

Fica o aviso sobre aqueles que se perdem em bosques sombrios. Com também a observação sobre o que demanda uma imagem do seu espectador, ou uma exposição, a estarmos atentos para aquilo que não é evidente, mas está intrinsecamente ligado ao discurso. E no Epílogo, ou um novo começo, o último núcleo da exposição em questão, aquele mal-estar retorna para que possamos refletir melhor sobre o nosso papel diante das incertezas que são mais urgentes a cada dia e sobre o que temos, como comunidade, como espécie, a perder. Como efeméride, é importante ressaltar que a curadoria não perde de vista, diante do elogio, a necessidade de manter vivo um olho crítico.

No Reino das Nuvens: Os Artistas e a Invenção de Sintra está patente no Museu das Artes de Sintra até 17 de outubro.

 

[1] Eco, Umberto. (1994). Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras. p. 12.

 

Daniel Barretto escreve em PT/BR.

Curador. Atualmente a viver em Lisboa. Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil), está a cursar o Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes, na Universidade de Coimbra. No Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, foi responsável pelas coleções de Escultura, Arte Africana e Novas Linguagens, como também esteve envolvido em vários projetos curatoriais.

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