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O sentido imperfeito da escultura

Em 1944, o escultor italiano Arturo Martini escreveu no texto Escultura língua morta: “A escultura nunca será espontânea entre os homens. Nada justifica a sobrevivência dela no mundo de hoje. Utilizar-se-á, ainda no futuro, somente para usos comemorativos e de solenidade”.

Na época em que se derrubam esculturas de líderes mais ou menos famosos, se vandalizam estátuas de escritores ou políticos – como sempre se fez um pouco por todo o mundo, mas essa é uma outra história -, qual é o sentido contemporâneo da arte de esculpir?  Seria talvez melhor perguntar: ainda faz sentido esculpir?

Que pensaria Martini vendo os objetos estranhos, que parecem vir dum mundo alienígena, realizados pela artista Nairy Baghramian (alemã, nascida no Irão em 1971) na Galeria de Arte Moderna – GAM – de Milão? Baghramian expõe pela primeira vez num museu público italiano, graças à Fundação Furla, que promove a exposição com a curadoria de Bruna Roccasalva.

Através das obras da artista, a escultura volta a ser língua viva; fala-nos de problemas recorrentes e da própria arte.
De facto, as esculturas da artista seguem a ideia de imprecisão; estão longe, as definições que não chegam: as esculturas não têm género. Porém, unem-se visualmente com as salas da GAM, com as cores das paredes e os mármores do chão, mas sem terem ligações com a arquitetura; relacionam-se com o contexto, mas permanecem simultaneamente alheias. Não é por acaso que o título desta mostra é Misfits, ou seja, “desajustados”.

São objetos que tentam integrar-se no contexto, mas acabam por fazer-nos sorrir com ternura; os desajustados de Baghramiam são formas curiosas e fracas, por um lado; provas misteriosas doutras vidas, por outro.
Há mais de vinte anos que a artista trabalha a definição de espaço, repensando a dicotomia exterior e interior e interpelando-nos sobre as questões relacionadas com a produção dos objetos.

Eis que, mais do que parecer língua morta, na prática artística de Baghramiam a escultura surge como identidade dos tempos atuais: ela é autónoma, livre. Cheia de imprecisões, não se envergonha, todavia, com isso.

“A ideia de Misfits” – escreve a curadora – “nasce do contexto urbano específico da GAM. A arquitetura neoclássica da Villa Reale, onde o museu tem a sua sede, debruça-se sobre um belíssimo jardim inglês. O contraste de impressões gerado pelo ambiente que evoca o mundo lúdico e tranquilo da infância, ao mesmo tempo que engendra uma vaga frustração pela sua atual inacessibilidade, foi o mote para Misfits”.

Será que a possibilidade de não se satisfazerem as expetativas está a ganhar força como o estilo da arte de hoje? Ou será que até a antiga escultura se rebela com as ideias que temos dela?

Os confrontos estão abertos, assim como as posições parecem demarcadas. Por enquanto, Misfits é uma exposição a “não esquecer”, se estiver de visita a Milão até 26 de setembro.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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