Os dedos são mestres: Entrevista com Ernesto Neto
Por ocasião da mais recente exposição individual de Ernesto Neto, Mentre la vita ci respira – SoPolpoVit’EreticoLe, comissariada por Lorenzo Giusti na Sala delle Capriate do Palazzo della Ragione, que está localizado no centro histórico de Bérgamo, entrevistámos este grande artista brasileiro.
Fiel às suas linguagens, Neto realizou uma instalação ambiental composta por elementos naturais: especiarias várias, pequenas plantas, palha, mas também tecidos, capas de livros e tijolos.
“Há tempos” – diz-nos o artista – “parei de procurar inspiração olhando para o céu” – lembramos os seus famosos trabalhos habitáveis de formas “suspensas” – “agora concentro-me numa nova dimensão terrena, podemos dizer que mais ligada poeticamente às raízes, aos pés, à semente que brota em flor pela escuridão”.
De facto, Mentre la vita ci respira – SoPolpoVit’EreticoLe transforma-nos em visitantes ativos, uma vez mais. Podemos deitar-nos no chão e descansar num coração amarelo, que representa o Sol, a vida e o polvo, animal herege e ao mesmo tempo metáfora daquele que é o tempo pandémico e do vírus com os seus tentáculos. Encontramos, como sempre acontece com os espaços criados por Neto, novas ligações entre a vida e uma arte que relata a humanidade intrinsecamente relacionada com a natureza.
Matteo Bergamini – Em primeiro lugar, queria perguntar-lhe como está a viver este seu regresso a Itália, desde a participação na Bienal de Veneza de 2001.
Ernesto Neto – Na verdade, eu estive diversas vezes em Itália desde a Bienal de Veneza de 2001. Fiz uma mostra no MACRO, na Fundação VOLUME, em Roma, no ano de 2008, e na Galleria Cortona, na Embaixada do Brasil, em 2009. Foram trabalhos muito especiais, além de participar de algumas coletivas e, novamente, na Bienal de Veneza de 2017.
MB – Sempre trabalhou utilizando materiais naturais, criando ambientes onde os visitantes podem descansar, relaxar. Poderíamos dizer que a presença do ser humano completa as suas obras. Este último ano e meio não foi fácil no que respeita às relações humanas, distanciaram-se, fecharam-se… Discorrendo sobre o tema, notou alguma mudança quanto às atitudes do público na aproximação à sua obra nestes últimos vinte anos?
EN – Essa é uma pergunta bem interessante, talvez possamos analisar a evolução da sociedade a partir dessa atenção. De facto, sempre pensei que a relação com a obra demonstra um pouco da psique de cada um. No entanto, são tantas as variantes que fica difícil de fazer essa avaliação temporal. E eu nunca parei para pensar sobre isto, já que vivemos sempre o presente. Mas as variantes são importantes. Uma mostra numa galeria é sempre muito diferente duma mostra numa instituição. E entre as próprias instituições. Acima de tudo, têm uma grande variedade de público, tanto em quantidade como em qualidade. Além disso, ainda existem as variantes culturais dos vários países: expor a mesma obra em Londres, em Tóquio ou no Rio de Janeiro é muito diverso. O público sempre se manifesta de forma diferente dentro das semelhanças. O curioso é que frequentemente procuramos ver mais as diferenças do que as semelhanças! Meu trabalho dança na ideia de unir as semelhanças entre as pessoas.
MB – Pode contar-nos como nasceu o projeto Mentre la vita ci respira, para o Palazzo della Ragione, em Bérgamo?
EN – Sim! Quando eu comecei a sentir o espaço, estava lendo Caliban e a Bruxa (de Silvia Federici, coincidentemente italiana), sobre o processo de desencantamento da sociedade europeia a partir do fim das terras comunais, do controle do corpo, da repressão sobre o feminino. No começo do livro, Silvia falava da perseguição aos hereges como o início desse movimento em nome do progresso.
Logo depois, eu li Pindorama revisitada (do brasileiro Nicolau Sevcenko), falando do filósofo místico Gioacchino di Fiore, que nos conta sobre a sua visão do Cristianismo Antigo como a figura do “Pai” e da Idade Média como o “Filho”. Segundo o autor, estaria a chegar o “Espírito Santo”, sob o qual todos seriam livres, sem ricos e pobres. Nicolau fala desse momento como uma epifania que se espalha pela Europa, semelhante a “fogo na palha”, gerando várias seitas hereges.
A partir daí, eu já não sei o que acontece! Mas quando vi as fotos da Sala delle Capriate, no Palazzo della Ragione, e depois, de olhos fechados na cama, perto do travesseiro, com meu corpo contorcido, os dias passando, um atrás do outro, eu comecei a ver pedra e palha, como se fosse uma dança, meu olhar-corpo grudado neste encontro da pedra, já com a forma de paralelepípedo, com a palha. A pedra que tiramos da terra. A palha que nos aquece, acolhe, alimenta. Aí já não sei como se deu a magia, mas o trabalho foi-se configurando, auto-sonhando-se. Sabe como é: nós somente encaminhamos, recebemos e passamos. O corpo do artista é uma espécie de mediador!
Ahh, tivemos ainda o coronavírus – esse ser herético, essa besta viva e não nosso irmão, nosso algoz, onde somos o lar de sua vida, que nos dificulta o respirar, que é nosso contato com Gaia – vida terrena, lugar de mãe, corpo-paisagem – nós, o mundo deles e eles que invadem o nosso mundo, perguntando: quem somos? o que somos? Deram-nos um cartão amarelo, enquanto indivíduos e sociedade. Nós somos feitos de três triliões de células, com nosso DNA. De um quatrilião de células estranhas, micróbios, bactérias, incluindo diferentes vírus, dos quais precisamos para viver. A célula, o início da vida, isso tudo me levou lá ao fundo do mar, a bilhões de anos atrás. Foi dali que saiu esta célula-polvo – SoPolpoVit’EreticoLe – com suas membranas-tentáculos, serpentes, jiboias constritoras, dobraduras, linhas, cromossomas, colares, que assim vem brotando, dia após dia, uma pedra depois da outra…
MB – No seu projeto para Bérgamo, utilizou materiais achados nas redondezas – pedras e palha, tecidos e perfumes – com a vontade de trazer à luz a visão que, durante muitos anos, identificou o “novo mundo” aos olhos e na ideia dos habitantes do “velho mundo”. Hoje, qual é a sua conceção do “novo mundo” e quais são, neste mundo, os problemas ainda existentes?
EN – O “novo mundo” é o “velho mundo”! É, todavia, muito mais velho do que aquele ao qual chamamos de “velho mundo”: um “velho mundo” ancestral, absolutamente conectado com a natureza, com o organismo vivo da terra, com o vovô Sol, a bola de fogo cósmica, o Pai de toda a vida. A poderosa luz do interior do Sol, com a enigmática escuridão de dentro da vovó Terra-Água – esta combinação é o alimento das plantas, que gera o ar, nosso alimento e de toda a família fauna: nós, seres vivos!
Esta ancestralidade de que falo é indígena, adormecida em nós, mas ainda viva! É nesse afastamento de nossa família, de animal e planta, que habita toda a dor, lamento e ganância. Os textos iludiram-nos, apaixonámo-nos por nós mesmos, deixámos de ser o centro do mundo com o Renascimento; mas a cultura, os nossos produtos, a nossa capacidade criativa, a nossa arte, deu-nos novamente a ideia de sermos o centro do mundo.
Somos belos como uma flor, um lago, o vento, a montanha, o leopardo, a libélula, o Sol e toda a família natural. Neste momento, os novos “velhos mundos” trazem os tambores da África, os cantos das Américas, as meditações do Oriente. Somos muito mais do que pensamos e muito menos do que exteriorizamos.
O “novo mundo” não está na luz, no Iluminismo, mas na escuridão, no interior, nas raízes, no feminino dentro da terra, nas folhas, em nós, em cada um de nós… Partindo dessa escuridão, podemos encontrar a luz. A semente nasce no escuro da terra: cresce em busca da luz, porém mantém os pés firmes na terra, onde os dedos do pé bebem água pura, divina e cristalina.
MB – No seu trabalho, sempre deu atenção aos temas da ecologia, do meio ambiente, da reciclagem. O que é que acontece quando os temas se transformam em moda? Perdem a capacidade de serem mordentes/sarcásticos, de serem importantes?
EN – No meu trabalho, há sempre o tema da vida, do ser, de estar vivo aqui-agora, de sentir a vida e o tempo nesse exato momento. Quando afirmamos essa potência, essa graça e essa alegria, somos inteiros.
O que podemos chamar de “pensamento ocidental” racionaliza a vida, separa e classifica o meio ambiente, a ecologia, a agricultura, a física, a cultura, etc. No entanto, essa moda tem um fundamento e pode habitar-nos por um longo período de tempo, quiçá nos transforme. O facto de esses valores estarem na moda é porque estamos numa catástrofe sócio-ambiental. Nos últimos cinquenta anos, o desenvolvimento acelerado empurrou-nos para um abismo.
Quando eu nasci, acreditava-se que poderíamos destruir o mundo a partir de uma guerra atómica. Agora, vemos que podemos destruir-nos – não destruir a Terra ou a vida, a qual continuará apesar de nós – simplesmente pelo nosso modo de viver. Vende-se o sonho de só se viver bem consumindo muito (o que é um vício), ao invés de só se viver bem. Isso é saúde, conexão com a natureza, amigos, coletividade, espiritualidade. Então, sim, a ecologia está na moda e a moda é parte da sociedade de consumo. Todavia, estamos também vivendo uma mudança do eixo da Terra desde 2012, pelo que esta moda pode ser o início de uma grande transformação: ouvir as culturas que não se ouvem há quinhentos anos. É hora de ouvir a terra, os tambores, as flautas, os maracás, o respirar e o encontrar-se consigo mesmo, pensar no coletivo, dar as mãos e, quem sabe, tirar o ouro dos dedos e reconhecer nele nossa ancestralidade e animalidade. Ahh, como eu amo os dedos! Eles ensinam. Fala-se muito da cuca[1]. Ela é sábia, contudo os dedos são mestres.
Mentre la vita ci respira – SoPolpoVit’EreticoLe, de Ernesto Neto, está patente na Sala delle Capriate do Palazzo della Ragione, em Bérgamo, até 26 de setembro.
[1] Refere-se a: cabeça, crânio, coco, cérebro, mente, inteligência, intelecto.