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O outro como epifania do belo no Polo Cultural de São Roque e no Convento de São Pedro de Alcântara

Uma questão que parece não envelhecer é sobre como se pode viver com o outro, de um extremo subjetivismo a partir do qual abrigamos a alteridade de alguém muito próximo, com quem é necessário estabelecer, mesmo que tacitamente, os parâmetros de um convívio cotidiano, a um limite quase sempre assumido como inexpugnável; uma invisível barreira que teima em se manter de pé, quando diante do estrangeiro. Mesmo que não seja ela mais que ruínas depois do esforço de ultrapassá-la ou derrubá-la, a sua presença acaba por se fazer sentir. Pode-se viver a fingir não perceber isto, mas o outro está logo ali. A exposição O outro como epifania do belo se propõe a observar um modo de aproximação da questão apontada ao lembrar da importância da hospitalidade.

Se a ideia é aplicada como discurso curatorial a reunir obras que trabalham o tema com maior ou menor evidência no seu universo representativo, não é menos interessante a abordagem gestual da curadoria em pensar os espaços da exposição como abrigos de ideias às vezes estranhas a eles; ou ainda de exercitar a memória sobre a própria história artística portuguesa como uma outra forma de hospedar, e mesmo cuidar, de alteridades que acabam por obscurecer. Há outras formas de abordar o outro, mas estar de portas abertas para receber a diferença parece ser um princípio elementar, assim como entender a beleza como algo que está fora de si, ou fora do mesmo. Para além, há que reconhecer a proximidade do objeto da exposição com a missão institucional da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que promove a mostra em seis diferentes espaços, no Polo Cultural de São Roque e no Convento de São Pedro de Alcântara, em parceria com a Brotéria.

O texto informativo da exposição reforça que «se pretende inserir a hospitalidade como casa de saída no percurso que procura trazer o outro à experiência partilhada». É possível que um espectador mais preocupado com as implicações que surgem do atrito da política com a estética se lembre da «partilha do sensível», de que fala Jacques Rancière.

«Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.»[1]

Se há um comum é porque antes dele há a discordância e a separação. O comum é uma prática que se exige constantemente, assim como a partilha. Os dois maiores núcleos da exposição são exercícios interessantes para se pensar a com[unidade] que podemos esperar no campo de visibilidade de espaços expositivos. No Museu de São Roque, com a curadoria de Sandro Resende, o núcleo dedicado ao Manicómio (espaço de criação que reúne artistas que de algum modo já experimentaram doenças relacionadas à saúde mental) funciona como intervenção na exposição que abriga permanentemente um acervo que poderíamos chamar de autóctone, pertencente à Santa Casa, e expressivo em todas as variações da arte sacra. A sobreposição de ideias curatoriais, a fazer um discurso hospedeiro de outro, institui de dignidade e poder conceitual as obras dos artistas levados ao espaço, que nada devem à tradição artística mais conservadora, mas invertem – como bem aponta o texto informativo da exposição – as hierarquias.

É difícil transmitir a sensibilidade precisa com que os espaços foram escolhidos para a recepção das obras do Manicómio. O estar ali, diante do acordo que se estabelece, do diálogo entre as peças, possibilita ao espectador elaborar incontáveis relações com o entorno das obras. Tal como a pequena Vénus em argila de Cláudia R. Sampaio, que reverbera estranha consonância com os relicários que estão próximos ao mesmo tempo que parece dirigir-se com grande intensidade à Virgem Maria do Sacrário-Relicário italiano do século XVII, rico em prata e pedraria, que está posta à sua frente, voltadas uma para a outra, quase como um eco distante e arquetípico. Ou a monstruosidade imemorial da escultura de Anabela Soares na pequena sala dedicada a iconografias e devoções. Não menos fascinante e provocador que o grito feminista da obra Eu sou mulher!, de Joana Ramalho, em meio a obras relacionadas ao culto à Virgem, ou os avessos de Micaela Fikoff ao lado de um cálice por demais dourado. E, apesar da discrição, o incômodo vídeo de Pedro Ventura que, logo à entrada da porta que leva aos espaços da exposição do museu, mas do lado de fora, cria um quase-díptico com quatro tábuas do século XVI que narram, já dentro do espaço expositivo, episódios edificantes da vida de São Roque, a traçar paralelos insuspeitos entre vidas tão distintas. Mas uma obra que também abre um pequeno interior doméstico, e mesmo uma intimidade mental, com uma porta que separa um dentro e um fora como o signo da hospitalidade, apontando uma fragilidade também daqueles que deixam entrar.

O segundo grande núcleo é a exposição de Rui Pimentel, no Convento de São Pedro de Alcântara, com a curadoria de Nuno Malheiro Sarmento. O artista que, depois do reconhecimento na década de 1980, passou por décadas de esquecimento, ganha aqui um espaço para o reposicionamento no cenário contemporâneo após a sua morte em 2015 e anos de trabalho contínuo fora do grande circuito. No texto de Laura Castro para a exposição, observa-se a necessidade de reexaminar a produção de Pimentel, artista de trabalho consistente e merecedor de aprofundamento. Há aí uma enorme generosidade da equipa curatorial em atentar para esse outro que se perde em nós mesmo, por razões às vezes um tanto obscuras. E reposicionar a obra de Pimentel nos espaços expositivos, ou dentro de um regime de visibilidade, é essencial para ressignificar não apenas a sua obra, mas perscrutar as razões das escolhas que levaram à invisibilidade no meio por tanto tempo.

Os quatro outros núcleos da exposição são mais pontuais, sem exigir menos dedicação do espectador no seu exercício de leitura. A escultura de Fernanda Fragateiro, artista já experiente com a ocupação do espaço comum da rua e da praça, opera no Largo Trindade Coelho como um ato de boas-vindas e, no misto de corrimão e obra, um útil efêmero e lúdico, põe o corpo do visitante como parte fundamental da ação. No interior da Igreja de São Roque, é o espaço transformado pelo som da instalação de Pedro A.H. Paixão. Isso reintegra algo da transcendência religiosa àquela outra, ainda mais rústica, que se encontra na natureza, somado ao desenho que é quase a imagem de um sonho perdido, que, no entanto, reverbera uma espacialidade interna (e externa, com uma austera moldura) que se integra aos valores arquitetônicos da igreja e às representações pictóricas características do espaço litúrgico. Em ambas as obras, os lugares acabam por hospedar estranhezas, mas sem sufocá-las. Ao contrário, permitindo que um ambiente de troca se estabeleça.

O vídeo da performance de Joana Craveiro, exibido no Arquivo Histórico da Santa Casa, esbanja afeto pela memória e pelo silencioso trabalho de bastidores dos arquivistas e restauradores. A pequena lição de histórias mínimas explorada na narrativa, íntimas daqueles que trabalham com o patrimônio, abarca em si mesma e devolve a generosidade em ser recebida e encenada nos próprios espaços de trabalho, a dar pulsação e pulmões a um trabalho que passa muitas vezes sem ser notado. E, a deixar por último, a obra de André Guedes, Encontro – Treze Junho 2021, na Brotéria. Contudo, a deixar-se por último pelo caráter mais explícito que fora mencionado no começo do texto, o atrito entre o estético e o político. O que é deixado ao visitante é o registo do encontro acontecido na data referida no título da obra. Ou registos, porque se há um documento efetivo do encontro, um vídeo disponibilizado ao espectador, há também os apontamentos de ideias que foram transversais ao encontro. Diante de espectros, o espectador tem que operar como um arqueólogo para montar a escrita. É preciso reescrever. O ponto importante é que se trata do encontro de uma comunidade que se instala, ainda que brevemente, em meio a outra, a comunidade jesuíta do centro cultural Brotéria. Uma comunidade que abriga outra, outros dentro de outros. Não deixa de ser instigante encontrar algumas referências cinematográficas nos rastros deixados do encontro de alguns filmes que carregam forte mensagem política. Caso de Born in Flames, de 1983, de Lizzie Borden, obra que problematiza importantes questões feministas, onde as mulheres gritam em meio a uma manifestação: «Sem Igreja, sem Estado! Mulheres escolhem seus destinos!». Deparar-se com o outro é sempre um risco, mas – como deixa evidente a exposição – é preciso primeiro deixá-lo entrar para que se encontrem os espaços comuns.

O outro como epifania do belo está patente no Polo Cultural de São Roque e no Convento de São Pedro de Alcântara até 5 de setembro.

 

[1] Rancière, Jacques. (2005). A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: Ed. 34. p. 15.

 

Daniel Barretto escreve em PT/BR.

Curador. Atualmente a viver em Lisboa. Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil), está a cursar o Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes, na Universidade de Coimbra. No Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, foi responsável pelas coleções de Escultura, Arte Africana e Novas Linguagens, como também esteve envolvido em vários projetos curatoriais.

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