Casa: Carlos Bunga na Galeria Vera Cortês
Em Casa, as imagens cambiantes expressam-se entre a intimidade do lar e os seres vivos intrincados que habitam o planeta. A casa assume uma dimensão poética e política, convertendo-se em objetos artísticos construídos com materiais precários que nos remetem para o testemunho de um mundo perene de vida.
Ao entrarmos na exposição, há um conjunto de instalações que nos aproximam do complexo vínculo entre o ser humano e a natureza. A casa-abrigo, casa-casulo, casa-ruína, corpo-sem-casa, defrontam-se com um meio que persiste para além da conquista, um sentido de devir material para além do antropos.
Em Homeless[1], as plantas encobrem as ruínas. O vestígio dos edifícios modernistas confronta-nos com um mundo onde a casa-habitação é um resquício rasurado. Nesta obra, afastamo-nos de um referente rígido associado a um lugar e mergulhamos na linha reta modernista que tudo consome globalmente. A casa sucumbe ao tempo. Não conseguimos reconstituir historicamente o que está por detrás destas ruínas, mas suspeitamos que é este o espaço de reflexão que o artista nos oferece, pois o sentido de habitar desdobra-se em múltiplos sentidos que se expandem desde a intimidade do ser até à totalidade do planeta. A casa é “um espaço público ou privado […] um lugar para amar […] [ou] para cuidar […] um refúgio […] um útero […] um desejo […] um direito […] uma prisão […] um espaço de liberdade […] ou de encontro […] um espaço em construção […] uma cabana […] uma zona colonizada […] espaço político […] exílio temporário […] uma fronteira […] o nosso corpo, um ecossistema, uma cidade, um país, a Terra.”[2]
A casa metamorfoseia-se na multiplicidade de casas que habitamos. O ser humano expande-se do indivíduo para o outro, para aquele que ultrapassa a cognoscência e persiste na mistura orgânica material, coexistindo como casulo[3] – um abrigo para a metamorfose – ou como planta[4] – antes e após a arquitetura.
A casa reconstitui-se como mediação poética que transcende o espaço geométrico[5] e perdura através dos seus fragmentos, como as paredes-esculturas feitas de plantas e de cartão canelado[6] que habitam o centro da exposição, ou ainda, como inventário[7] de troncos, sementes, inflorescências, pedras ou tijolos.
A casa é a cosmovisão animista[8] imbuída em todas as matérias e que, no entanto, se confronta com o sentido dicotómico de um ser humano que se vê multiplamente dentro e fora da natureza.
Retomando o mito de Abel e Caim, a existência nómada absorve um futuro indefinido, uma errância que faria sentido através da deambulação poética, mas que aqui alude também para os corpos-sem-casa, ou ainda, para aqueles cuja casa se expressa através da sua ausência: os que abandonam a terra em busca de um futuro melhor ou em fuga da guerra, os que vivem na rua, nos interstícios da cidade, desprotegidos do sol e da chuva, para os que habitam um corpo-casa[9] e se misturam com o mundo.
Casa está patente na Galeria Vera Cortês até 4 de setembro.
[1] Homeless #1, #3, #5, #6 (acrílico sobre impressão cromogénea a cores, 2021).
[2] Excerto da folha de sala: Casa, Carlos Bunga, Galeria Vera Cortês, 24 de junho a 4 de setembro de 2021. Tradução do inglês para português por Margarida Alves.
[3] Casulo #5, IV, V (grês, lápis sobre papel vegetal e papel, fita adesiva, 2021).
[4] Mimosa Pudica, desenhos da série Before Architecture, Nature (canal único, cor, sem som, loop 6’08’’, 2021).
[5] Alusão a Bachelard, Gaston. (1957/1993). A Poética do Espaço. São Paulo: Editora Martins Fontes.
[6] Moving Wall #1, #2, #4 e Construcción Pictórica Vertical. Naturaleza (plantas, latex, cola sobre madeira e cartão, 2021).
[7] Natural Objects and Artifacts (técnica mista, 2021).
[8] Animism #1, #2 (latex e cola sobre madeira, 2021). Animism #3 (latex e cola sobre cerâmica, 2021).
[9] Expressão retirada da folha de sala: Casa, Carlos Bunga, Galeria Vera Cortês, 24 de junho a 4 de setembro de 2021.