Walk&Talk 10 — Para um «lugar (em) comum» algures nesta ilha
Tomaram-no como um «evento-piloto» — esse que o é, na verdade, desde o primeiro momento: depois da nona-e-meia edição, no âmbito da qual havia reafirmado a capacidade inventiva e a força transformadora que lhe subjazem, o Walk&Talk assinalou o seu décimo aniversário com um regresso ao modelo presencial, desdobrando-se a partir e em torno de Ponta Delgada. De acordo com Jesse James, que assumiu a direção artística junto de Sofia Carolina Botelho, havia ainda um capítulo por encerrar. Era preciso dar a ver o que só poderia ser visto para lá do ecrã: andando e falando, nesse retorno à «deambulação» pelo território micaelense. Encontrámo-nos já perto do fim, no último dia do festival — e daí o tom conclusivo, em jeito de balanço: «Foi uma edição para fechar, para honrar o nosso compromisso com todos estes artistas [que trabalharam entre 2018 e 2021]. Era algo realmente importante para nós.»
Aprender fazendo: duas ou três notas sobre a dimensão ensaística do festival
Quando iniciou esta viagem, em julho de 2011, Jesse James fazia-se acompanhar por Diana Sousa. Com um apoio no valor de 20.000 euros, então atribuído pela Direção Regional da Juventude, puderam concretizar a ideia de trazer a arte ao espaço público, habitando-o como um «lugar de ensaio». Ao lembrar essa primeira fase, o diretor artístico do Walk&Talk sublinha a inexperiência da equipa: «Há 10 anos, a meio de uma crise, nós tínhamos 22 anos, não sabíamos, éramos muito ingénuos […] e íamos aprendendo à medida que íamos fazendo — isso foi muito importante para a [definição da] estrutura do festival porque o transformou num espaço de reação: está sempre a reagir a um contexto, a uma situação.» Com efeito, vem instaurar um «programa reativo» e de resposta às urgências do momento em que decorre.
Atestámo-lo muito recentemente. Face aos desafios impostos no início do ano passado, a sua capacidade de adaptação esteve naturalmente posta à prova. Eis que o Walk&Talk soube adaptar-se a esse novo «contexto», a essa nova «situação». Se o programa de 2020 havia assentado num «compromisso» entre o online e o onsite, o de 2021 procurou atender, dentro do possível, a essa imensa vontade de regressar ao mundo e ao outro: «Vê-se ainda hoje, na décima edição: o festival mudou de novo — não completa, mas significativamente — porque estamos a viver uma pandemia e precisávamos de dar continuidade ao projeto, queríamos estar presentes. A única maneira de o fazer passava pela mudança. Como não estamos agarrados a uma fórmula ou a um formato, conseguimos alinhar-nos com os projetos dos artistas […]».
Tomemo-lo como um «evento-piloto». Pois que nunca deixou de o ser, procurando ensaiar um novo modelo a cada nova investida. Com esta décima edição, o Walk&Talk trouxe a premissa da «espontaneidade» para além da subjacência, operacionalizando-a sob uma perspetiva curatorial e por meio de uma formulação titular — algo de inédito na história do festival, também porque a abordagem temática não se lhe havia assomado, até à data, como uma alternativa ao registo de sempre. Importa notar que este título não fecha: abre, larga em aberto. Será por onde formos enuncia a certeza para além da tão necessária «dúvida». Será — isso é certo. Temos descoberto por onde à medida que vai sendo: pouco a pouco, passo a passo.
Atendamos aos «processos de comunalidade» que hoje irrompem neste arquipélago
Ana Cristina Cachola veio integrar a equipa curatorial desta décima edição, juntando-se a Jesse James e Sofia Carolina Botelho no desenvolvimento de uma proposta que visou, acima de tudo, a construção de um «lugar (em) comum» na ilha de São Miguel. Foi em conjunto e a abrir «caminho» que engendraram esse «encontro» — ou reencontro? — com o mundo e o outro, renunciando à contenção de um programa estático, prescritivo, fechado em si mesmo: «Será por onde formos sugere um caminho que é tomado pelo coletivo.» Se assim não fosse, nem seria o Walk&Talk.
Com base nos projetos desenvolvidos entre 2018 e 2021, que reportam às residências artísticas então realizadas nos Açores, a equipa curatorial alinhavou um «caminho» multíplice, convidando o público a desencaminhar-se a partir e em torno desses pontos de «encontro». De facto, cada um dos projetos apresentados no âmbito da décima edição do festival — não apenas em contexto expositivo, mas também para além deste — assinalou um lugar de partilha com os demais e de partida para outras paragens.
Algumas dessas residências artísticas deram origem às exposições agora patentes no Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas, na Galeria Fonseca Macedo, no Instituto Cultural de Ponta Delgada, no Museu Carlos Machado, no Solmar Avenida Center, bem como no vaga — espaço de arte e conhecimento — um velho armazém na Travessa das Laranjeiras, que Giacomo Mezzadri e Joana Garcia de Oliveira, do Mezzo Atelier, transformaram para acolher a sede da Anda&Fala. Foi esta a primeira edição do festival desde que o espaço abriu ao público, em dezembro de 2020, com We never say never.
Enfatiza-se a natureza ensaística do projeto. Se a ilha figura como um «lugar de ensaio», o título vem depois da instalação da exposição. Alex Farrar pensa o bordado para além da técnica, embrenhando-se na complexidade dos processos — relacionais, sociais, culturais — que lhe estão subjacentes. É justamente por aí que anda e fala o Walk&Talk: no sentido de uma reflexão sobre os «processos de comunalidade» a irromper neste arquipélago — dado por muitos como um pedacinho do céu e assim trazido nas selfies daqueles que o visitam. Danny Bracken evoca o «desejo de encapsular a natureza» sob as mais diversas formas, atendendo ao caso paradigmático desta sweet white Ponta Delgada 2.0 — que remeterá para uma outra, não longínqua como a tomam, lembrada por Nadia Belerique a norte da cidade. Descobrimo-la na Ribeira Grande, em cada um dos elementos — holdings, assim os diz — que a artista dispõe no interior destes barris. São como que «portais» para outras dimensões afetivas, consubstanciando o «desejo de possuir e preservar» que em nós reverbera com maior ou menor fervor, porventura na medida da saudade.
Sabemo-lo turistificado, mas nem por isso — ainda! — ecologicamente comprometido. Mané Pacheco traz-nos à região pelágica deste arquipélago, cujas «condições geográficas e demográficas» permitiram enquadrá-lo como um dos hope spots do Atlântico, para investigar as «relações matriciais» menos prováveis — ou até então por descobrir — nas paisagens circundantes. Atente-se às flutuações pendentes de Margarida Fragueiro: também ela implica, no âmbito deste seu projeto, as dinâmicas simbióticas que sucedem pelo Atlântico — neste caso, entre as cracas e as boias recolhidas junto à costa portuguesa (de oeste para leste: Faial, Terceira, São Miguel e Porto). Sofia Caetano vem instaurar um «campo plástico sinestésico» que orienta a reflexão nesse mesmo sentido, convidando-nos a debater as problemáticas ecológicas da atualidade sob uma perspetiva multiespécie.
É na base de uma mundividência pós-antropocêntrica que esta geração procura repensar o lugar do indivíduo, atendendo especialmente às relações que este estabelece com o próprio meio — animal, vegetal, mineral, artificial, etc. Lançamo-nos de um karaoke existencial para o interior de um «ninho» ali bem perto — esse que Joana Franco terá arrancado de dentro de si para partilhar com o público do Walk&Talk. Ante as paredes desta estrutura cúbica, achamo-nos em confronto com a nossa própria escala. Há qualquer coisa de desproporcional, tal como sugere Alice dos Reis por meio de uma «ficção especulativa» — see you later, space island! — sobre a base espacial que ponderam construir na ilha de Santa Maria: a ambição. É a de quem almeja transcender-se, nem que para isso tenda a comprometer a sobrevivência da sua e de todas as outras espécies.
Recordemos, a propósito, uma das mais elementares premissas do Walk&Talk: «É um festival nos Açores, que surge do contexto açoriano e cumpre-se em constante relação com a ilha e o arquipélago. Sem os Açores, o festival não existe.» Com o passar dos anos, os projetos site-specific foram traçando um «circuito de arte pública» pela ilha de São Miguel — e a sua grande maioria permanece, ainda hoje, visitável. Será o caso das instalações apresentadas por ocasião do décimo aniversário do Walk&Talk: a pintura mural que inscreve o título desta edição numa das principais artérias da cidade — com a assinatura de Bráulio Amado; um study for a garden no Jardim Botânico José do Canto — concebido por Abbas Akhavan; esse vai e vem sem fim no Complexo Desportivo da Relva — uma intervenção de André Abel e Joana da Conceição (Tropa Macaca); a água de pau que corre por baixo do viaduto de Água de Pau — graças a João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira; e a semelhança por contacto a confundir-nos por entre as rochas vulcânicas dos Mosteiros — assim pensada por Luísa Salvador.
Porém, nem todos os projetos site-specific continuam patentes após a realização do festival. Veja-se o caso das intervenções performáticas na Pedreira Marques e no Pico do Refúgio: Flávio Rodrigues circunscreveu a hodiernidade com recurso às pedras ali recolhidas, procurando amplificar-lhes — amplificar-nos? — o «choro»; em colaboração com Javiera Peón-Veiga e Gonçalo Lopes, Gustavo Ciríaco rasgou um caminho naquela propriedade rural, convidando-nos a trilhá-lo — assim mesmo, cobertos pelo céu — num passeio com cerca de 45 minutos. De facto, o Walk&Talk é também um lugar de encontros irrepetíveis: à janela do inferno, então com Lucy Railton e Pedro Maia; sonhando ao ritmo de Catarina Miranda, para descobrir — ou lembrar — que dream is the dreamer; nesse fascínio suave, trazidos por Luís Senra e Beatriz Brum; e já no fim, pela lente de Diogo Lima, vir a saber que assim foram os últimos dias de Emanuel Raposo.
Como nunca antes, uma ilha em convulsão
Lembra-nos o texto introdutório — Será por onde formos, assinado por Ana Cristina Cachola, Jesse James e Sofia Carolina Botelho — que um festival não pode descurar a sua vertente festiva: um festival não deixa de ser, em todo o caso, uma festa. Há que entendê-lo para além do produto acabado, restrito no seu âmbito, admitindo-o como um processo evolutivo, sempre em aberto. Trata-se de uma operação coletiva, partilhada — que pressupõe um certo grau de envolvimento por parte do público e reivindica o gesto criador sob uma lógica desierarquizante.
Segundo Jesse James, pouco importará como queiram designar as práticas implicadas nos muitos trilhos do Walk&Talk. Não haverá por que tomá-las sob o epíteto da «arte participativa», ainda que este desdobramento permaneça no domínio da eventualidade — até ver, como uma possível derivação: «Não estamos interessados nesse tipo de projetos [ditos participativos]. O que queremos é estabelecer relações — e aí poderão surgir os projetos participativos, outras coisas.» Pois que o desígnio primeiro deste festival é o de unir os pontos, o de alavancar as pontes. Será o que daí vier, por onde queiramos afluir.
Desdobrou-se como nunca: «Foi assim que chegámos às excursões: uma forma de acrescentarmos outra camada ao programa, procurando criar uma experiência que levasse e orientasse [o público] a partir dos projetos artísticos do festival. Mas uma experiência com o espaço, com o lugar, com a ilha […] Como diz a Sofia [Carolina Botelho], é uma experiência holística. Importa desconstruir os preconceitos que temos a respeito da experiência da arte. Pode ser diferente. Pode existir em relação a essas outras experiências [passear, conversar, nadar, descansar, etc.].» Foram dez excursões ao redor de Ponta Delgada, largando a partir dos projetos apresentados no âmbito desta edição. Houve mais, muito mais: visitas guiadas, conversas infindas, open studios — e até uma maratona. Mais do que nunca, o Walk&Talk procurou afirmar-se como uma construção generativa. «Mais do que programático», quis-se convulsivo.
Jesse James falou-nos do «caos» em que o festival tende a recair. Houve algo de particularmente caótico nesta décima edição — o que o trouxe ao ponto de partida, quando a vontade lhe compensava a inexperiência. Foram dez anos a aprender, mas a aprendizagem não cessa: «Ano após ano, continuamos a experimentar. Quando experimentamos, chegamos a determinadas conclusões — e essas conclusões levam-nos a novas estratégias. É um ciclo.» Muita coisa mudou — desde logo, o nosso olhar sobre o arquipélago. Houve quem compreendesse a dimensão desta mudança, sublinhando a importância da autorreflexão em contexto institucional: «Estão a perceber que é preciso falar sobre os Açores para além do The New York Times […] Estão a perceber que é preciso falar através de outros meios — isso já mostra, a meu ver, que começam a entender o potencial da cultura num lugar como os Açores.» Passará, sem surpresa, pelos trilhos do Walk&Talk. Tem sido sempre por onde vão.
Foi a convite da Anda&Fala e com o apoio da Visit Azores que a Umbigo viajou até Ponta Delgada, juntando-se à celebração do décimo aniversário do Walk&Talk entre 22 e 24 de julho.