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Na margem da paisagem vem o mundo: A ilha desdobra-se

Na utopia moderna, a ilha é o lugar onde se encontra o equilíbrio entre a natureza e os homens que prosperam em harmonia social, política, ecológica e económica. Estes ideais são apresentados de um ponto de vista universal e puramente descritivo com a seguinte estrutura: o relato do espaço, das suas pessoas e talvez até o fenómeno que levou ao aparente estado de perfeição, seguido da peripécia. A chegada de um personagem (talvez o vilão ou então o salvador) que descodifica a premissa deste sítio, causando o caos, a guerra e o colapso da sua sociedade.

Na exposição Na margem da paisagem vem o mundo, o disruptor da utopia da ilha é o artista. No Pavilhão Branco, em Lisboa, encontra-se, então, a ilha da Madeira: tropical e geograficamente isolada, onde predomina flora e fauna exóticas, agora transpostas para o meio da cidade. O artista, como agente disruptor do sistema, acede inconscientemente ou não à crítica do lugar. Com a construção forçosa de uma amostra do espaço, o imaginário da ilha desdobra-se.

A história coletiva transcende a artificialidade do teatro, reconhecem-se nas peças símbolos de uma sensação familiar. Em Kemp Land (2020), Hugo Brazão materializa uma primeira simulação de um palco que, apesar de vazio, apresenta a possibilidade de o observador jogar com vários ângulos de leitura através da justaposição técnica de materiais distintos. Em pano de fundo, como impressões de memórias, as telas fluidas de Carolina Vieira, revelam um sol fervilhante, os astros límpidos e as folhas desvanecidas em sombra. O conjunto faz parte de um retrato paisagístico alargado, continuado em Ennemis Intimes (2018), com a documentação do filme de ação de produção francesa por Joana Viveiros. A peça reporta a um arquivo de backstage e contexto das filmagens que ilustram o exotismo da ilha, revelando a atração de muitos às suas paisagens. A ilha da Madeira é, através da sua teatralidade, um lugar presente no limbo de existência entre a ficção e a realidade que se concretiza, em paralelo, através de metodologias de recolha e organização.

Os modelos de catalogação, seguindo padrões científicos de observação e recolha, representam o lado oposto da sua encenação. As peças procuram medir, ordenar e referenciar todos os modelos possíveis de modo a criar o molde mais próximo da realidade. As peças de Miguel Ângelo Martins e Nuno Henrique são, respetivamente, um levantamento de cor e de relevo. Em conjunto, apresentam uma desconstrução primária da ilha da Madeira, ao mesmo tempo que a reconfiguram no espaço expositivo, transformando-a, então, em laboratório. A manipulação destes protótipos repete-se, também, nas peças de Bruno Côrte e Mariana Marote, que reportam a uma descoberta passada, mostrando os seus vestígios, quase como em forma de herbário. Desprendida de qualquer adjetivo, a Madeira é submetida a uma investigação que desmonta o cenário documental até ao seu componente mais elementar.

Por fim, a peça de Sara Rodrigues, Degrees of Abstraction (2019-2021), exibe o resultado de uma performance em que convergem os dois pontos aqui analisados, a paisagem fabricada, mas também a artificialização da natureza. A artista usa estruturas industriais de contraplacado, cimento e paletes de madeira, assim como fertilizantes químicos e pesticidas, para criar uma ideia de ordem ou um jardim. A performance subentende a destruição dos materiais, prevalecendo apenas a terra e as sementes, que se vão lentamente espalhando pelo chão da galeria.

A exposição coletiva Na margem da paisagem vem o mundo pode ser visitada no Pavilhão Branco até 31 de agosto.

Licenciada em Artes e Humanidades (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018), é programadora cultural e curadora independente de arte contemporânea. Em paralelo com a frequência do Mestrado em Fine Arts Curating (Goldsmiths, University of London), dedica-se à investigação de espaços expositivos não convencionais e metodologias curatoriais alternativas. (retrato por Hugo Cubo, 2020)

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