Do desejo ao reconhecimento. Cuidar de si/cuidar de todos. Tudo o que eu quero: Artistas portuguesas de 1900 a 2020 no Museu Calouste Gulbenkian
Depois de visitar a vasta exposição – com mais de 200 obras – no edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, caminhei pelo jardim disposta a digerir todos os encontros-afetos produzidos pela exposição. Depois de alguns minutos, um bebé se aproxima e me encara intensamente por alguns segundos. A mãe imediatamente corre atrás da sua cria. Brinco com o bebé por alguns minutos. Depois dessa interação, começo a observar ao meu redor: mães, avós e bebés ocupam o jardim no fim de tarde ensolarado. O carinho, cuidado e dedicação de todas era palpável. Este episódio direcionou as minhas inquietações em relação à exposição. Sofia Guedes Vaz, em um depoimento para a Gulbenkian, expõe brilhantemente uma das minhas questões: a esteses, sensibilidade, como estratégia para um futuro sustentável[1]. O feminino é o arquétipo desta capacidade. Teorias ecofeministas imaginam futuros possíveis para nós enquanto humanidade, independente do gênero. Porém, uma segunda questão – de ordem política e não apenas filosófica – se apresenta: a discriminação e a marginalização femininas no mercado de trabalho (inclusive no meio artístico)[2] e o papel doméstico que a mulher exerce sem receber rendimentos[3] são uma realidade que precisa ser desconstruída (agora, hoje, o quanto antes!). Reconhecimento e asserção do desejo de criação da voz e do desejo próprio é um começo. E por isso eu confirmo: a arte é revolucionária.
Imagem: destruir paredes internas e externas e contruir novos fundamentos a partir de uma visão ecológica, utilizando a sensibilidade, o cuidado e a gratidão como alicerce. Uma segunda imagem se forma: deusa Kali na tradição Hindu – representada manchada de sangue, com cobras e um colar de crânios. E uma terceira imagem ao lado das outras se instaura: a estátua de Vênus de Milo – sem braços – pálida pelo desgaste do tempo[4], preservada a quatro chaves no Museu do Louvre, em Paris.
Reconhecimento
«E o amor? O som amor… é preciso fazer a distinção entre amor e sentimento maternal, segurar. O que corresponde um pouco a uma etapa, a um momento de sobrevivência, até chegar o dia em que, tendo já passado pelo ventre de sua mãe, ele se torne amor; para mim o amor é a força que aquece aqueles que passam pelos teus domínios com o fim de lhes permitir atingir o estádio em que tu estás.
Seja olhado com olhar terno: é a força, uma força.»[5]
Importante: os nomes das artistas presentes na exposição, independentemente da forma como estas vozes se materializaram e foram convocadas pela curadoria. Aurélia de Sousa, Mily Possoz, Rosa Ramalho, Maria Lamas, Sarah Affonso, Ofélia Marques, Maria Helena Vieira da Silva, Maria Keil, Salette Tavares, Menez, Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Paula Rego, Maria Antónia Siza, Ana Vieira, Maria José Oliveira, Clara Menéres, Graça Morais, Maria José Aguiar, Luisa Cunha, Rosa Carvalho, Ana Léon, Ângela Ferreira, Joana Rosa, Ana Vidigal, Armanda Duarte, Fernanda Fragateiro, Patrícia Garrido, Gabriela Albergaria, Susanne Themlitz, Grada Kilomba, Maria Capelo, Patrícia Almeida, Joana Vasconcelos, Carla Filipe, Filipa César, Inês Botelho, Isabel Carvalho e Sónia Almeida.
A estratégia é sentir
Tudo o que eu quero reúne trabalhos de artistas portuguesas entre o início do século XX e a contemporaneidade. A curadoria propõe um percurso pela arte portuguesa narrada a partir do olhar feminino, dividido em dezasseis núcleos: O lugar da artista, Feminino plural, Corpo central, O olhar e o espelho, A palavra, O espaço da escrita, Construção, Le vivant, A casa, O político, Memórias coletivas, A world of illusions, As mulheres do meu país, Quotidiano vernacular, O teatro do corpo e, finalmente, Ouve-me.
Os núcleos são não-lineares e criam encontros inesperados entre artistas de gerações distintas que se ocupam com desassossegos semelhantes. Talvez uma mensagem de que há ainda muita luta a ser travada para a elaboração de uma história em que o feminino não é mais o outro sexo.
O subtítulo que utilizo – A estratégia é sentir – evoca a planificação de uma ética explorada por teorias ecológicas e feministas centradas em uma premissa de valorização dos aspetos emocionais da vida moral, não em contraponto ao logos, a razão, mas como complementar. Expor, colocar em evidência, gerações de mulheres que lutaram por um lugar de fala dentro da arte, mas também fora dele, nos ajuda a criar fôlego nesta direção. A marginalização é usada como arma, mas também como escudo. A experiência estética desarma e é neste lugar que precisamos habitar.
Tudo o que eu quero: Artistas portuguesas de 1900 a 2020 está patente no Museu Calouste Gulbenkian até 23 de agosto, agora com horário alargado (das 10:00h às 21:00h). A entrada é gratuita, mas sujeita à lotação do espaço.
[1] Hoje, 29 de julho de 2021, chegamos ao dia da sobrecarga da Terra. Nesta data, esgotamos os recursos que o planeta nos proporciona em um ano. Precisamos de 1,7 planetas Terra para dar conta da demanda – 74% de recursos a mais do que o nosso planeta é capaz de regenerar em 1 ano. Saber mais aqui (consultado a 29-07-2021).
[2] Julia Flamingo escreve sobre a mesma exposição com um olhar crítico em relação ao espaço ganho pelas mulheres no campo das artes em Portugal. Saber mais aqui (consultado a 29-07-2021).
[3] Artigo publicado no Público, em 2019, com seguinte subtítulo: «Laura Sagnier, coordenadora de um estudo sobre as mulheres portuguesas, defende que a primeira coisa a fazer para que as mulheres andem menos cansadas é “mudar a formatação da sua cabeça”. Porque, ao quererem fazer tudo, acabam por prejudicar a saúde, a vida conjugal e a dos filhos.». Saber mais aqui (consultado a 29-07-2021).
[4] É possível que, como outras esculturas de mármore da Antiguidade Clássica, a Vênus de Milo fosse policroma.
[5] Llansol, Maria Gabriela. (1999). Livro das Comunidades. Lisboa: Relógio d’Água. p. 103.
Maíra Botelho escreve em PT/BR.