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Herança: Ana Vidigal e Nuno Nunes-Ferreira no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado

A exposição Herança, inaugurada no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, é o resultado de um encontro entre a obra da artista Ana Vidigal e a obra do artista Nuno Nunes-Ferreira, num trabalho essencialmente desenvolvido com base numa reflexão profunda, e uma densa pesquisa, sobre o tema das memórias familiares, do colonialismo, das tradições de Portugal, da identidade hegemónica nacional e da guerra colonial.

Num esforço de «reparação histórica», como escreve Raphael Fonseca, Ana Vidigal recupera nostálgicas embalagens de produtos de consumo, imbuídas de «portugalidade», pertencentes ao período do Estado Novo, e transforma a mensagem existente nos slogans das embalagens de modo a consertar a memória e a repor a verdade. Slogans como «I had a farm in Africa», corrigido para «I had a farm war in Africa», ou a frase enigmática, vagamente ocultada por manchas de corretor, «Do pó vim, e ao pó hei de tornar… Mas então… eu, que sou… serei pó… de…» relembram incessantemente a verdade crua da guerra e a mortandade dos seus combatentes, ocultadas por de trás de uma imagem construída de uma África romantizada, promissora, repleta de encantos e atrações, riquezas e exotismos.

Nuno Nunes-Ferreira, por seu lado, e por meio do amontoado de revistas alusivas ao tema de Angola, colocadas sobre o chão, forma o mapa do país. Um longo padrão, formado por estas revistas, revela um exemplar da revista Portugal Ilustrado, cujo tema principal – o da capa – é uma Angola edílica e paradisíaca. Outra revista, aberta numa certa página, e cuja proveniência é desconhecida, exibe outro artigo sobre Angola e uma fotografia de um grupo de pessoas autóctones, envergando vestes tribais. O autor do texto, também desconhecido, reveste de comentários as abundantes imagens das páginas do artigo, e não se poupa a elogios sobre a felicidade que ostentam os autóctones.

O sentimento de posse colonialista está imanente em toda a exposição, entrecortado, depois, pela dureza da verdade, tornada visível por Nunes-Ferreira, sobre o inferno vivido pelos soldados portugueses em África, na guerra colonial.

Nuno Nunes-Ferreira exibe, num efeito de mosaico, um tríptico composto por retalhos de notícias de jornais sobre combatentes e ex-combatentes. Neste tríptico, podem ver-se fotografias, entre elas um recorte de jornal que parece noticiar ocorrências do final da guerra. Uma intrigante fotografia anuncia um regresso diferente. Os soldados, antes de desembarcarem em terra, para voltarem às suas famílias, vestem-se à civil. A foto apenas regista as fardas e as botas vazias deixadas ao abandono, pelos soldados, ao longo do cais. O modo como ainda conservam a forma do corpo que as vestiu relembram o sacrifício da guerra, os corpos abandonados inertes, ou ainda a ausência do corpo, como nas botas de Van Gogh, evocadas por Heidegger.

Herança está patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, até 26 de setembro.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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