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Memórias de uma (H)era

Memórias de uma (H)era, de Paulo Lourenço, é uma exposição que revela os limites da serigrafia e a capacidade plástica e tridimensional que pode ganhar quando levada ao extremo. Para além dos motivos vegetais e fitomórficos, Lourenço deixa as marcas indeléveis de um longo processo – tão longo quanto uma era obriga, tão vascular e invasivo quanto uma hera permite, que engole e cobre as formas que reveste.

Nesta perspetiva, e como Fernando Rosa Dias afirma no texto expositivo, “a imagem torna-se a memória da impressão”, ao mostrar um ritual capturado no esforço coreográfico sobre as placas de madeira e no labor minucioso e aturado do desenho. O que vemos já não é exatamente a planta, mas a própria natureza do campo expandido da serigrafia, e a reminiscência de muitos e repetidos gestos, tal como Lourenço tem vindo a trabalhar ao longo do seu percurso artístico. É, simultaneamente, a reprodutibilidade pela reprodutibilidade, mas também a reprodutibilidade a favor de algo único e objetual, para lá da planaridade a que a serigrafia nos habituou. Lourenço desconstrói a natureza reprodutível e mecanizável da serigrafia, para dela construir uma imagem da essência poética e avassaladora do mundo natural, dos seus múltiplos artifícios e agências, da sua cabal existência, autossuficiente e única.

Não menos impressionante é, todavia, a própria representação do género botânico em causa: a hera, de linhas finas e sinuosas, de ramos ondulantes e auscultantes, que tão espantosamente a serigrafia consegue reproduzir. O brilho argênteo da grafite realça a natureza nervurada, capilar e ramificada da planta, ao mesmo tempo que recapitula a ambiência romântica da vegetação que reveste e preenche os arestas e vértices escuros e húmidos de um qualquer lugar. Deixada aos elementos e à sua sorte, a hera devora tudo. As raízes aéreas lignificam-se às paredes e aos corpos inertes, sorvendo cada molécula de humidade aí existente, para deixarem marca nas paredes, uma vez arrancadas, gravando o desenho da sua existência e da sua passagem.

A técnica empregue pelo artista faz, portanto, como que um levantamento poético deste espécime complexo – tão complexo quanto a natureza rizomática da hera, justamente reinterpretada na sua aceção filosófica por Rosa Dias, que referencia o conceito de rizoma desenvolvido por Deleuze e Guattari: um fluxo perpétuo e tentacular que se espraia no tempo e no espaço e vai consolidando, concomitantemente, informações, nexos e proposições de forma horizontal.

E ainda que a representação seja contida no suporte empregue, o olhar consegue adivinhar o desenvolvimento larval da planta e dos potenciais rizomas. A reprodutibilidade da hera – de um simples ramo poder constituir uma nova planta em potência – é análoga à reprodutibilidade da técnica da serigrafia – e, enfim, da própria arte, sempre generativa e geradora de imagens, poéticas ou visões.

Os relevos que aqui se mostram são sobreposições múltiplas de impressões – na casa dos milhares, se quisermos quantificar – e formam um território abstrato de sinuosidades, depressões e cumeadas, em tudo semelhante à construção de um terreno feito de curvas de nível. É este o espaço que o próprio artista habita durante dias e semanas, justapondo, erguendo estratos sobre estratos. Perdemo-nos nas várias camadas de matéria que constroem estes objetos-imagens. Perdemo-nos sem que nos demos por tal, pois que com deleite estudamos cada capilaridade, cada nervo, cada linha deste imenso corpo que, embora segmentado, se afigura monstruoso, imenso, memorial e memorável.

Memórias de uma (H)era, de Paulo Lourenço, está patente na Galeria Diferença até 31 de julho.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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