Top

Entrevista a Jonathan Uliel Saldanha, artista associado do Teatro Municipal do Porto para a temporada 2021/2022

Jonathan Uliel Saldanha é dos artistas mais estimulantes do panorama contemporâneo nacional. Os seus meios vão desde o audiovisual à performance, sendo, além disso, tecnicamente exímio. Os temas do seu imaginário conceptual são atuais e, por vezes, assustadoramente pertinentes. A alteridade entre humano-máquina, natureza-tecnologia, corpo-algoritmo, espaço-ressonância são parte deste imaginário. Jonathan é o artista associado do Teatro Municipal do Porto [TMP] para a temporada 2021/2022. Estivemos à conversa sobre a sua última performance-instalação, Lithium Faust, e sobre as ideias para a próxima peça enquanto artista associado do TMP.

 

Rodrigo Fonseca – O que mais me interessou na instalação foi a forma como produziste o som. Como é que foi produzido? Através de field recordings ou são produções tuas?

Jonathan Uliel Saldanha – Desde há alguns anos para cá, sou muito desinteressado em field recordings. Interessa-me muito a produção de verdade, mais do que uma espécie de verdade instituída e, portanto, tudo o que ouves é sintético, é produzido. Existem algumas vozes que aparecem na composição em partículas, vozes de trechos de ensaios ou de outras peças antigas. O som desta instalação, desta máquina, é altamente processado. Lithium Faust trabalha as isometrias da luz e do som. Estas ferramentas têm regras e protocolos semelhantes. Dentro desta máquina tentámos construir uma espécie de inteligência exterior que conduz mudanças de paradigma, ao nível da verticalidade por exemplo. Os sons pertencem a um imaginário de robôs, vibrações, reminiscências de massas humanas, espectros… Levando-nos a reinjetar a humanidade, não a partir do toque e da proximidade, mas a partir da prótese que é a tecnologia, altamente inspirada pelo Starlink e pelo animismo dos satélites. Não é, no entanto, um animismo pacífico, é um animismo que conduz a uma hiper-presença do ser humano. A máquina em Lithium Faust funciona porque não opera de forma empática. Qualquer pessoa pode estar onde quiser. Ela acaba por ser uma prótese humana, uma vez que tem extensões como o olhar e a escuta. O falso está aqui presente como reminiscência de Goethe e Fausto, do acordo que Fausto fez com o demónio para ter mais conhecimento.

RF – O que representa o lítio nesta peça?

JUS – Há um triplo pensamento à volta do lítio: o sangue das máquinas, a exploração e o animismo — há pessoas que tomam lítio. Parece ser um sangue vital, algo que talvez nos contamina com a sua própria agência, com a sua própria vontade: não somos nós a impor a nossa vontade ao lítio. Talvez o lítio nos esteja a dizer alguma coisa através do telemóvel, das máquinas… Como uma mensagem subliminar. Interessa-me muito trabalhar com matérias de alteridade, matérias onde o nosso limite de definição e compreensão se tornam impossíveis, mas quando conseguimos compreender, é interessante ouvir o que essa existência tem a dizer, ou encontrar ferramentas para traduzi-la na nossa perceção.

RF – Porque acaba por criar comunicação.

JUS – Algum tipo de comunicação. São coisas que já trabalhei de outras formas, trabalhei muito a partir de echos, os coros eram matrizes desenhadas a partir de estruturas cibernéticas que depois eram aplicadas a massas humanas. Os humanos comunicavam através do toque ou de relações que não eram necessariamente vocais ou melódicas. Aquilo que surgia era harmónico, melódico, coral pelo menos. Esta relação deixava uma espécie de intervalo, uma espécie de espaço inexplicável que era a comunicação de tudo isto com o echo e com a ressonância do espaço. Todo este processo servia para fazer o espaço falar e, através da ressonância das pessoas, chegar a uma frequência que vai estimular este diálogo com a alteridade do espaço.

RF – Este processo esteve presente na peça Mercúrio Vermelho?

JUS – Em Mercúrio Vermelho, há uma série de conexões com isto muito por conta dos 6 meses do ano passado que estive em Kampala [Uganda] e em que conheci um tipo que fazia tráfico de mercúrio vermelho.

RF – É uma pedra?

JUS – Não, não existe! É um subproduto inventado pelos russos durante a Guerra Fria, que tinha como propósito ser uma tecnologia esotérica. Foi amplamente difundido no Norte de África como um objeto que existe de facto: mercúrio líquido de cor vermelha. Utilizado essencialmente por fetiche, mas também para lavar dólares negros, dólares roubados ou desviados que vêm sujos de tinta. Ganhou contemporaneamente outras significações, por exemplo: para os alquimistas, trata-se de algo parecido ao chumbo, hiper-techno, hiper-fodido; para o «pessoal dos Dubais», é um amuleto-fetiche para investir em ações do petróleo.

RF – Em Lithium Faust, a presença humana acabou por desaparecer.

JUS – Acabou por desaparecer completamente. O lítio tem características que não são as do mercúrio, tem implicações muito mais diretas. Como esta peça é de meia temporada, está ainda numa fase experimental. Precisamos de tempo, porque tudo isto é complexo tecnicamente e porque se vai desenvolver cada vez mais! Vamos conectar inteligências artificiais. A presença humana está apenas na reminiscência de Fausto: para saber mais, temos que fazer um pacto, temos que oferecer a nossa alma e, portanto, aqui só estão almas. As pessoas que estão dentro da máquina [da instalação] estão num limbo… Parecem estar num não-lugar de hipnose. A verticalidade é muito importante para a experiência da instalação, porque podemo-nos examinar a partir dela. Estamos a falar de satélites da Starlink que daqui a 10 anos multiplicar-se-ão por 15 000: daqui a 10 anos as estrelas serão essas. Há aqui qualquer coisa a refletir sobre este novo eixo vertical.

RF – A nossa relação com o que está em cima vai mudar completamente, as constelações de coisas que vamos ver…

JUS – O único sítio que tens de liberdade absoluta é isto! [aponta para cima] Mesmo ao nível da astrofísica, da quântica… A astrofísica continua a ser um dos polos de investigação mais abstratos sobre a compreensão do humano… Ali [em cima] reside a alteridade máxima. Quando aquilo passa a ser fechado, temos um problema: deixa de haver selvas… Deixa de haver possibilidades! Estamos claramente a fechar um circuito e é muito interessante procurar entendê-lo.

RF – O que tens planeado para a próxima peça que vais desenvolver como artista associado do TMP?

JUS – Tenho duas coisas planeadas nas quais temos vindo a trabalhar. Trata-se de uma peça em vídeo que será apresentada em dezembro, imagino que instalada no Rivoli. Tal como Lithium Faust, será uma espécie de diálogo sem humanos, mas com humanos filmados. Poderíamos dizer que a peça são três solos de dança, contudo não é, é algo que está mais próximo de um filme de ficção científica. Os intervenientes movem-se no interior de espaços muitos particulares, espaços do capital como o casino e o hotel. Quando acedem à dança, fazem-no por causa de um vírus, um vírus que lhes altera a comunicação, que lhes ocupa o corpo. A dança surge como estimulante e meio para uma outra comunicação. Isto é uma das coisas que estamos a filmar. No próximo ano, há uma coisa já de palco: um lago. O que é que encontramos à superfície do poço? Um lago. Este lago é altamente tóxico e será realizado por mecanismo de luz, cor e clusters de robôs. O lago vai estar a ler dados da bolsa, tudo nele está sujeito às flutuações da bolsa, do capital: não é um lago romântico. Serão postos em jogo outros meios, como um grupo de performers e um grupo de músicos de orquestra.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)