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A invenção do compasso: Humor Líquido no Espaço Camões da Livraria Sá da Costa

A invenção do compasso segundo Margarida Oliveira

Humor Líquido – um coletivo orgânico que nasce de um conceito de criatividade fluída e diluída entre trabalhos conjuntos e individuais – expõe A invenção do compasso no Espaço Camões da Livraria Sá da Costa.

Apresentando o trabalho de Ana Mata, Anabela Mota, Catarina Domingues, Marta Castelo, Nádia Duvall, Sara Belo e Teresa Projecto, a exposição foca-se na união central apresentada pela trajetória do compasso, que tendo por base um só ponto se alarga pelo espaço. A trajetória identificada pelas artistas é trabalhada segundo conceitos estéticos e rítmicos próprios a cada elemento do coletivo, que se reúnem num espaço de diálogo dinâmico.

Analisemos a obra de Marta Castelo, que apresenta um conjunto de objetos brancos, em cerâmica e com um formato afunilado, sobre uma mesa de tampo preto. Estes objetos coautoraram a imagem do cartaz da exposição, tendo sido utilizados enquanto instrumentos de desenho em diversas superfícies, nomeadamente na areia que aparece demarcada nessa imagem. Peças de diferentes tamanhos e formatos, com uma ponta em comum, dispostas sobre uma mesa da mesma forma que foram utilizadas pela artista para desenhar – a representação de um coletivo de objetos quase reflexiva do coletivo de artistas que expõem em A invenção do compasso. Para além destes objetos, a artista apresenta um conjunto de impressões daquelas que foram as imagens produzidas pelos mesmos em diferentes superfícies. Desenhos circulares riscados por uma materialidade escultórica ocupam os vários espaços da exposição quase como elementos de união, corporizações do ponto central do compasso.

Numa perspetiva quase oposta e num outro momento da exposição, Nádia Duvall expõe uma peça marcada pela materialidade viscosa de uma pele de acrílico sobre um esqueleto de madeira. O formato da peça remete-nos para o nascimento de algo, que congela no momento de rompimento resultando numa peça de constante tensão. As bases curvas de madeira, retiradas de janelas destruídas, surgem revestidas do verde vestígio do nascimento da obra que nunca nasce.

É o coletivo quem o afirma no texto da exposição: «Inventamos um ponto e, a partir dele, ensaiamos o movimento infinito da circunferência. Ou da repetição, infinitamente diferente: o compasso gera ritmo, passo, possibilidade.» O ritmo de uma exposição coletiva será sempre pensado sob as especificidades dos membros da exposição e o tempo de A invenção do compasso é absolutamente circular, como se não tivesse um final a que se referir.

 

A invenção do compasso segundo Margarida Alves

Entre a tatilidade e a materialidade da luz, o vestígio de um compasso transforma-se em substância.

Ao entrarmos no espaço de exposição, uma escultura de Anabela Mota[1] toma a forma de um pêndulo negro que goteja sobre uma superfície de grés cru. A água meteoriza a argila, num movimento lento que transmuta a superfície em profundidade. O pêndulo negro reflete-se num duplo corpo que dá lugar ao grés cozido, onde a ação do fogo se traduz numa maior durabilidade material. Contudo, o tempo prossegue subtilmente e, com a ajuda dos elementos, fissura, transforma, assume a grandeza das escalas geológicas.

A escrita do tempo transmuta-se em pequenos compassos que delineiam formas circulares. É pela mão do vento que a artista Marta Castelo[2] assinala os desenhos das plantas dunares sobre a areia, ou ainda, o resquício de esculturas de grés cuja matéria telúrica deambula sobre o papel. O ensaio em rotação expande-se através de Teresa Projecto[3], onde a presença-ausência dos torrões de terra se reflete na prática do desenho. Dois círculos dialogam entre si: o primeiro circunscreve o vazio; no segundo, a terra encaminha-se para o espaço negativo. Um dá lugar ao outro, num segundo primeiro tempo e num primeiro segundo tempo que se imiscuem entre si.

Os processos de construção e desconstrução das formas e dos volumes substituem a causalidade narrativa pelas articulações poéticas. Um corpo onírico de Nádia Duvall[4] alude-me à Serpentine Dance[5], de Louie Fuller. A escultura nomeia o instante, o movimento de um corpo-compasso, a sua metamorfose em elementos da natureza. E entre as formas que se atravessam, a corporeidade estende-se para além do espaço exterior que contém a matéria. Pois, a matéria respira, transmuta-se em formas. O exercício intermaterial expressa-se como um continuum entre o próprio corpo e o mundo. O humano difunde-se do antropos para o substrato de vida contingente que o precede: as múltiplas irradiâncias vegetais de Sara Belo[6], ou ainda, as cartas da incerteza de Catarina Domingues[7].

O compasso de espera, compasso cartesiano, expressa-se na sua antípoda, como geometria não euclidiana, expandindo-se para fora do seu centro de gravidade[8]. Pois, é no sentido da alteridade que aquele que é tocado reafirma a obra: «[…] se pressentes a beleza em mim/é porque a trabalho nos dias./Toda a ação deve conter edição/E se esta for vista pelo outro/enquanto veículo de beleza,/então aí atinjo a alegria.» (Ana Mata e Catarina Domingues – Chama | Ficção)[9].

 

[1] a escrita do tempo – lento (grés cru, sisal e água) e a escrita do tempo – lentíssimo (grés cozido, sisal e água) por Anabela Mota (2021).

[2] a invenção do compasso I e II (impressão em jato de tinta sobre papel) e a invenção do compasso III (instalação, tampo negro com seis peças cerâmicas) por Marta Castelo (2021).

[3] segundo primeiro tempo e primeiro segundo tempo (grafite sobre papel) por Teresa Projecto (2021).

[4] KAIRÓS (janelas e acrílico) por Nadia Duvall (2021).

[5] Serpentine Dance, de Louie Fuller (1902). Disponível aqui.

[6] Irradiância I, II, IV, V, VI, VII (grafite sobre papel) por Sara Belo (2021).

[7] Cartas da Incerteza (tinta da china e caneta sobre papel) por Catarina Domingues (2021).

[8] Alusão ao poeta Francis Ponge. Ponge, Francis. (1967/1996). Alguns Poemas. Tradução por Manuel Gusmão. Lisboa: Edições Cotovia.

[9] Vertical (vídeo, cor, som) por Ana Mata e Catarina Domingues – Chama | Ficção (abril e maio de 2021).

 

A exposição do Humor Líquido pode ser visitada até 13 de julho no Espaço Camões da Livraria Sá da Costa, que a organizou em colaboração com a Ocupart.

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