Entrevista a Nuno Crespo, diretor da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa
Com mais de vinte anos de existência, a Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, desempenha um papel determinante no campo artístico contemporâneo. Aliando o ensino e a investigação às práticas artísticas contemporâneas, a Escola das Artes assume-se, cada vez mais, enquanto espaço de produção artística, laboratório de experimentação e criação contemporâneas. Sob a direção de Nuno Crespo desde 2017, tem desenvolvido uma programação expositiva regular e intensa, que inclui residências artísticas nacionais e internacionais e um plano de edições. Ultrapassando o contexto universitário em que se insere e orientando-se para uma atuação crítica no quadro sociocultural contemporâneo, assistimos à produção de projetos artísticos num intercâmbio profícuo e criativo entre alunos e artistas.
Com o objetivo de explorar as linhas orientadores do programa expositivo que a Escola das Artes tem vindo a desenvolver, entrevistámos Nuno Crespo, o seu atual diretor.
Mafalda Teixeira – Inaugurada em abril de 2017, a sala de exposições da Escola das Artes assume-se enquanto espaço de produção e difusão cultural contemporânea. Quais são as estratégias, as linhas orientadoras e o que privilegia a sua programação expositiva?
Nuno Crespo – A galeria foi inaugurada na anterior direção da escola, com a Professora Laura Castro. Para a atual direção, era muito importante que a galeria fosse um sítio onde a comunidade da Escola das Artes – formada pelos nossos alunos, pelos nossos investigadores, pelos nossos professores – pudesse encontrar um espaço de colaboração com artistas com os quais habitualmente não convivemos. Um lugar onde somos confrontados com outros modos de fazer, de pensar e de entender o que é a investigação e a prática artísticas. Nesse sentido, a galeria é um reflexo daquilo que é o nosso projeto pedagógico de ensino de artes e, portanto, as exposições partem sempre de convites a artistas para, num primeiro momento, serem artistas visitantes, uma espécie de tutores; e, ao longo desse ano, irem tentando perceber o que o contexto específico desta escola lhes sugere enquanto projeto expositivo.
À exceção de Francisco Tropa e Salomé Lamas, os primeiros artistas que expusemos desde que faço a programação, todos os artistas têm este envolvimento, o que permite fazer com que a galeria seja não só um espaço expositivo, mas um lugar onde o ensino da arte, que é a nossa principal missão, acontece através de uma maneira informal, em que os artistas que estão cá visitantes acabam por envolver os alunos com o seu trabalho… Nós sabemos muito pouco como se ensina arte, sabemos que esta é a maneira do aluno aprender, participar, conhecer e perceber as dinâmicas, como se organiza um espaço expositivo, que, muitas vezes, não cabem naquilo que a burocracia do ensino superior, do ensino universitário europeu nos exige e que não é compatível com um projeto de ensino de pedagogia artística. Há esta informalidade que é muito importante, as relações que se estabelecem com os artistas que por aqui vão passando, desde os jovens artistas como Igor Jesus, Nuno da Luz, a artistas consagrados como foi o caso de Julião Sarmento e como será, para o ano, o caso de Ângela Ferreira.
O espaço expositivo permite igualmente uma ideia de ensino por contágio, que para nós é muito importante, possibilitando trazer para a universidade, pela informalidade do trabalho e do contágio, o espírito que encontramos nas academias de arte que nos servem como elementos de referência, como a Academia de Belas-Artes de Düsseldorf. A galeria é precisamente o espaço onde a comunidade da Escola das Artes estabelece relações desierarquizadas e informais, onde esta ideia de ensino acontece.
A programação tem sido feita socorrendo-nos de artistas que são próximos do nosso projeto e que utilizam a escola como centro de produção. A escola que tem no seu cuore as novas tecnologias e a galeria que, do ponto de vista disciplinar, mostra sobretudo instalação audiovisual, new media art, vídeo e fotografia.
Há também um aspecto muito importante. À exceção de Ângela Ferreira, Julião Sarmento e Francisco Tropa, percebemos que havia um espaço para artistas que já fizeram universidade e que já não são os jovens artistas, como Diogo Evangelista, Vasco Araújo ou Igor Jesus, e interessa-nos essa franja.
Paralelamente a estes aspetos, começámos a desenvolver uma série de publicações em parceria com a Documenta. Trata-se de uma coleção que tem como função sistematizar aquilo que é a investigação artística e, nesse sentido, interessa-nos trabalhar com artistas cujos processos de investigação – o nosso ensino baseia-se em investigação – sejam muito diferenciados, dando-nos modelos diversos, que são ferramentas que as pessoas que decidem estudar connosco têm à sua disposição.
MT – Qual a importância que a Escola das Artes atribui à atividade editorial?
NC – Nós fazemos uma coleção de pesquisa artística, em que pedimos aos artistas para pensarem numa publicação que acompanhe o projeto expositivo e que, de alguma maneira, seja um lugar de reflexão sobre o seu projeto de investigação. Agora estamos a fazer um livro com Filipa César, totalmente diferente do livro de Vaco Araújo, completamente diferente do livro de Diogo Evangelista. É muito interessante e desafiante para nós, enquanto escola, esta constatação de que as metodologias de pesquisa artística não são sistematizáveis num único modelo: cada artista tem um modelo próprio. O que queremos é assumir as publicações como lugar reflexivo sobre práticas, sobre investigação. Enquanto escola, enquanto universidade, temos obrigação de refletir acerca desses processos e o que nos sugerem enquanto metodologia.
MT – De que modo tem sido desenvolvido o processo curatorial dos projetos expositivos produzidos pela galeria da Escola das Artes?
NC – Num primeiro momento, as curadorias foram assumidas por mim, porque era um projeto que estava a arrancar e era preciso definir o que queríamos deste espaço. Tivemos um primeiro projeto com curadoria externa de João Silvério, na exposição de Pedro Tudela, e iremos ter curadoria externa na exposição de José Pedro Cortes. Lentamente o espaço tem de ganhar uma autonomia que não esteja totalmente dependente de mim, porque senão a diversidade e os diferentes modos do que é expor acabam por se perder, o que não é bom para nós enquanto instituição.
MT – Assumindo-se a Escola das Artes como espaço de produção, investigação e pensamento e considerando as exposições como lugares de desafios e de projetos que se desdobram noutros, qual a importância atribuída à elaboração de programações paralelas às exposições?
NC – Temos como programação cultural, de entrada livre, quatro grandes áreas: a sala de exposições, o auditório, o cineclube e um conjunto anual de aulas abertas. A programação nunca foi pensada como uma programação integrada, temos deixado que cada uma das iniciativas, tanto as aulas abertas – que são maioritariamente artists talks, em que os artistas apresentam e discutem o seu trabalho – como a galeria e a programação de cinema, sejam relativamente autónomas, ainda que haja pontos de relação entre elas. Esta programação tem-nos trazido muitos desafios do ponto de vista da investigação, cujos acontecimentos e conhecimentos procuramos sistematizar e traduzir em ciência commumente praticada.
MT – Constatei que estão a realizar uma programação paralela – Palavra, Ferro e Fogo – a partir da obra de Rui Chafes, duas esculturas presentes no campus e integradas no contexto da exposição Studentato, uma parceria entre a Fundação de Serralves, a Federação Académica do Porto e a Universidade Católica Portuguesa.
NC – Temos uma Escola de Artes e, por isso, sentimos que temos outra responsabilidade. Aproveitando a presença das esculturas de Rui Chafes, achámos que era preciso provocar a nossa comunidade a pensar, discutir e refletir sobre elas. Nesse sentido, estamos a organizar aqueles três encontros.
MT – Desde que assumiu a direção da Escola das Artes, tem trabalhado no sentido de a afirmar enquanto estrutura de produção artística, que não tenha como únicos interlocutores a comunidade interna, mas que se abra para a cidade, no sentido do reconhecimento e da crítica pelo circuito artístico e cultural da região em que se insere.
NC – Uma escola não vive do que acontece no seu interior, mas da capacidade que tem em dialogar com o contexto. É muito importante para um projeto educativo na área das artes ter uma cena artística estimulante. No Porto, temo-la, desde logo, com Serralves, com as outras escolas de arte – a Escola Superior Artística do Porto, a Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto – com a excecional programação que a Câmara Municipal do Porto faz. Para nós, era importante não desenvolver projetos nem um pensamento acerca da pedagogia artística que ficasse salvaguardado pelos muros da academia, mas, pelo contrário, desenvolver um projeto que se expusesse para ser elogiado, criticado, melhorado, porque é aí que as pessoas que estudam connosco vão estar, é aí que se querem integrar e é com essas pessoas que vão dialogar. A abertura para a cidade e para a comunidade é, para nós, fundamental, assim como romper com qualquer ideia de arte académica e de percursos artísticos que são validados através do sistema da arte feita para os jornais que só existem nas bases de dados académicas. O que nos interessa é, desde o mais cedo possível, ter os nossos alunos expostos àquilo que é a realidade das galerias, dos espaços expositivos geridos por artistas, daquilo que é uma cena artística mais alternativa, mais ortodoxa, o que é uma exposição em Serralves, o que é uma exposição organizada num espaço efémero, e é aí que queremos estar.
MT – No ano passado, a sala de exposições da Escola das Artes foi um dos dez espaços de programação selecionados pelo júri do Criatório, programa promovido pela Câmara Municipal do Porto/Ágora – Cultura e Desporto do Porto. Qual a importância deste reconhecimento para a Escola das Artes?
NC – É muito importante que pessoas por quem tenho muita estima e admiração reconheçam que o nosso trabalho merece ser apoiado, porque, ao contrário do que se possa pensar, a universidade tem orçamentos muito limitados e esse apoio, esse reconhecimento não só é importante para podermos fazer melhor, como também é um reconhecimento interpares que, para nós, é muito elogioso e importante. É um apoio fundamental para podermos fazer, com a qualidade que nos propomos, as exposições que fazemos.
MT – Os projetos artísticos e expositivos produzidos pela Escola das Artes têm contribuído para a sua afirmação no mapa da arte contemporânea da cidade e do país. É possível falarmos, nos dias de hoje, de uma marca artística made in Escola das Artes?
NC – Acho que não e ainda bem. As escolas não são nem o reflexo do gosto, nem dos interesses dos seus professores, nem podem impor nenhuma maneira de pensar ou de fazer. O elemento desafiante daquilo que é o ensino, é promover – apesar de toda a formalidade que o conhecimento e a investigação no contexto da universidade devem ter – o desenvolvimento de indivíduos que pensam por si e que pensam contra nós e para além de nós. Não é encontrar um conjunto de indivíduos que segue um modelo, mas que podem seguir um modelo. Isso é que é muito interessante no nosso espaço expositivo. É esse espaço de liberdade, de fazer e de pensar que, para nós, é importante. Entre o departamento de conservação e restauro, cinema, new media, o departamento de sound art, que já teve artistas como Berru ou Diogo Tudela… Isto é um mundo e é muito interessante promover não uma uniformização de linguagem, de estilos ou de interesses, mas, apesar das diferenças, sermos capazes de reconhecer o valor daquilo que o outro apresenta. Exige de nós um trabalho permanente de tentar descobrir o que cada uma das pessoas que aqui está connosco verdadeiramente quer fazer e nós acreditamos muito no modelo tutorial, no modelo de trabalho individual e entendemos mesmo que a escola é um sítio aberto de discussão e, desde logo, temos um modelo de funcionamento muito democrático.
MT – Durante a situação pandémica, quais as estratégias a que a Escola das Artes tem recorrido, no âmbito da prática expositiva, para contornar este momento delicado?
NC – Inaugurámos a exposição de Vasco Araújo e depois fechámos, mas ainda foi possível visitar. Inaugurámos a exposição de Pedro Tudela durante o confinamento, mas posteriormente conseguimos ter durante um mês a exposição aberta ao público. O esforço que fizemos foi o de tentar encontrar maneiras de traduzir a exposição, sabendo que há sempre qualquer coisa que escapa na passagem para um ambiente virtual. Desenvolvemos bastantes recursos, sobretudo com a exposição de Pedro Tudela, para a presença virtual da exposição. Não tivemos nenhuma exposição exclusivamente online, ainda que nos tenhamos dado conta de que o mundo da arte contemporânea está a precisar de um choque digital.
MT – No dia 7 de maio, inaugurou a nova exposição de Nuno Cera, Sinfonia do Desconhecido II, que integra o programa da Ci.CLO/Bienal de Fotografia do Porto de 2021. O que nos pode revelar sobre a mesma?
NC – É uma projeção, um filme que é um segundo capítulo de um projeto que Nuno Cera já tinha vindo a desenvolver e apresentado no Museu do Chiado, Sinfonia do Desconhecido. É muito interessante a maneira como Nuno Cera olha para a arquitetura, não como quem olha para um objeto, quase com caraterísticas formais e materiais muito próximas da escultura. Este trabalho tem uma energia muito diferente que não tem a ver com a arquitetura enquanto objeto, mas com uma ideia de atmosfera que encontra nos locais e que transporta para o espaço expositivo.
Leitura do Mangue, de Sónia Vaz Borges e Filipa César, inaugurou na passada terça-feira e manter-se-á até 8 de outubro na sala de exposições da Escola das Artes. De referir ainda a Porto Summer School on Art & Cinema, que decorre até 9 de julho, contando com a participação de Ariella Aïsha Azoulay, Elizabeth Povinelli, Filipa César, Matías Piñeiro, Marinho de Pina, New Alphabet School, Patrícia Ferreira Pará Yxapy, Sérgio Pereira, Sónia Borges e Vadinho da Costa.