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É só uma ferida: Pedro Barateiro na Fundação Carmona e Costa

Na era do simulacro, as variações da representação incidem particularmente sobre a progressiva perda de autoridade do real face ao signo[1]. Os seus terrenos de eleição confluem entre si, assumindo facetas que abrangem o entretenimento, a vigilância, o poder, a tecnociência, entre outros. O simulacro alimenta o nosso imaginário através do domínio do hiper-real e o real é absorvido pela operacionalidade dos dispositivos.

No filme de animação Monólogo para um monstro (2021), atualmente presente em exposição, Pedro Barateiro reflete sobre a forma como a informação é captada e absorvida por um ser desconfortável com o seu próprio corpo, mas em profunda comunhão com os meios tecnológicos: «Tenho um ecrã que aparece quando preciso dele. É como uma folha de papel que posso riscar e apagar sempre que é preciso.»[2] Perante um corpo que se transforma continuamente, e face ao próprio real que se torna difícil de descortinar, o dispositivo através do qual se acede à informação consubstancia-se como o fio condutor que dá sentido ao indivíduo.

Paradoxalmente, esse fio condutor é também aquele que desterritorializa o ser humano. Em busca de pistas acerca da sua identidade, o monstro assume o seu interesse pela palavra solastalgia, a «dor da terra que se habita […] o conjunto de transtornos psicológicos que ocorriam nas populações nativas em função de mudanças destrutivas no seu território como consequência das atividades de mineração, da desertificação ou da mudança climática.»[3] A palavra solastalgia dá celeremente lugar a «um recetáculo»[4] de informação, «um poema»[5], «uma linha sem fim»[6], «um estado constante de consciência e inconsciência”[7], de «procura de sentido»[8]. Perante as massas de informação, não nos fixamos num conceito, não existe espaço para o seu aprofundamento. Flutuamos, por isso, entre múltiplos sentidos que geram ambiguidades e contradições assimiláveis.

O conjunto de desenhos e esculturas que o artista apresenta em exposição dialoga com o filme de animação, assumindo o monstro como figura central. A sua permanente mutação remete-nos para o data monster – como armazenamento intermediário de memórias, processamento permanente do presente – e para nós próprios como seres sencientes que alimentam e se alimentam reciprocamente destes sistemas.

O monstro metamorfoseia-se sucessivamente até se transformar num corpo fragmentado onde algumas palavras soltas – como data, systems e economy – pululam entre os resquícios dos membros. É na prática do desenho que o artista se distancia do dispositivo e reflete – como numa «ferida aberta, uma autópsia»[9] – sobre o espaço real que habita: a cidade histórica de Lisboa e o seu acumular de ruínas absorvidas pelo turismo. De algum modo, o artista, a sua mão que se expressa sobre o papel, é também o testemunho de uma cidade que se transmuta em consonância com o monstro.

No limite, perante a carência de referente associado ao real, o indivíduo coexiste através de um corpo-dispositivo que absorve a materialidade do mundo. Contudo, revela-nos o artista, nos interstícios do simulacro reside ainda o mundo subtil das palavras: «a única coisa que resta, realmente, daquilo que fomos capazes de fazer, apesar de toda a ciência.»[10]

É só uma ferida, de Pedro Barateiro, com a curadoria de João Mourão e Luís Silva, está patente na Fundação Carmona e Costa até 17 julho.

 

[1] Alusão a Baudrillard, Jean. (1981/1991). Simulacros e Simulação. Tradução do francês para o português por Maria Pereira. Lisboa: Relógio d’Água.

[2], [3], [4], [5], [6], [7], [8] e [10] Excertos retirados de Monólogo para um monstro (2021). Realização e Argumento: Pedro Barateiro. Produção: Sardinha em Lata (Nuno Beato e Diogo Carvalho) e Pedro Barateiro. Produção Executiva: Patrícia Figueiredo. Departamento Financeiro: Aida Jerónimo. Storyboard: Pedro Barateiro e Vanessa Namora Caeiro. Animação e Edição: Vanessa Namora Caeiro (com adaptação de desenhos de Pedro Barateiro). Tradução: Pedro Barateiro e Luís Silva. Pós-Produção Áudio: Daniel Camalhão. Voz: Conan Osiris. Banda Sonora Original: BLEID.

[9] Barateiro, Pedro. (2021). É só uma ferida. Lisboa: Documenta (com Fundação Carmona e Costa e Mousse Publishing).

Margarida Alves (Lisboa, 1983). Artista, doutoranda em Belas Artes (FBAUL). Investigadora bolseira pela Universidade de Lisboa. Licenciada em Escultura (FBAUL, 2012), mestre em Arte e Ciência do Vidro (FCTUNL & FBAUL, 2015), licenciada em Engenharia Civil (FCTUNL, 2005). É artista residente no colectivo Atelier Concorde. Colabora com artistas nacionais e estrangeiros. A sua obra tem um carácter interdisciplinar e incide sobre temas associados à origem, alteridade, construções históricas, científicas e filosóficas da realidade.

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