Contra-Parede; confronto e subversão
Os muros escondem, ocultam, protegem. Interrompem as pernas e os olhos. No entanto são espaços privilegiados para a boca, quando eles próprios não são, em si, a boca.
Em Contra-Parede, a exposição patente no Palácio da Galeria, em Tavira, os trabalhos de Ana Vidigal (Lisboa,1960), Nuno Nunes-Ferreira (Lisboa, 1976) e Pedro Gomes (Moçambique, 1972) estabelecem um diálogo entre si. No centro da discussão a parede, como refere, Hugo Dinis, o curador, “questionando o espaço arquitetónico em que as obras são apresentadas”.
Na primeira sala da exposição encontra-se uma instalação site-specific de Ana Vidigal, De tesoura ou tesouro, três chapéus de sol esventrados colocados nas paredes e um outro, fechado e encostado na vertical, remetem-nos para a ideia de telhado, de cobertura ou abrigo.
Resumidos ao tecido circular e colocados nas paredes, como se fossem saias, os chapéus de sol perdem a possibilidade de se transformar num abrigo, momentâneo ou provisório, mas não deixam de nos remeter para o universo da casa. O próprio título convoca os telhados de quatro águas que caraterizam a arquitetura civil de Tavira e inscrevem a cidade na empresa dos chamados “Descobrimentos”. Os navegadores tavirenses tiveram preponderância nas viagens oceânicas e os telhados de tesouro são testemunho desse envolvimento.
No vazio interior do tecido, uma frase escrita a lápis remete para a existência anterior da parede e abre outro campo de interpretação. A anterioridade do edifício, em relação ao chapéu de sol e ao negócio do ócio colocam em confronto o património, e tudo o que nele se aponta para as questões de função e identidade, e a indústria do turismo.
Em O calor dos fornos afaga os corpos a estrutura de um chapéu-de-sol apresentado sem cobertura e associado a tijolos, intervencionados em barro manufaturado de Santa Catarina da Fonte do Bispo, conduz-nos a uma reflexão sobre a própria arquitetura, e o conceito de casa. Sem cobertura a casa continua a ser uma casa?
Com humor e ironia Ana Vidigal reflete sobre a identidade e a arquitetura associando os tijolos e ladrilhos, fabricados em Santa Catarina da Fonte do Bispo, a folhas de revistas onde se ofereciam moldes de cartão para construir casas algarvias ou do Alentejo, mas onde a ideia de casa regional, com as suas características especificas e muito próprias de cada território, coexistem com cromos de atores de Hollywood.
No trabalho de Nuno Nunes-Ferreira a parede assume-se como suporte da palavra e resulta na exposição de dezenas de páginas de jornais que ocupam o espaço temporal da revolução de Abril.
Em alguns momentos usa passe-partout para selecionar palavras ou frases, ocultando o resto da página. Nesse jogo entre as frases destacadas e as capas de jornais inteiras estabelece-se um jogo entre o individual e o coletivo.
É evidente a rotura com o silêncio do Estado Novo. Os jornais surgem nas paredes como gritos contendo em si a exuberância do dizer. A boca livre. Ao ponto de a defesa de ideias e das convicções anteriormente censuradas se tornar ensurdecedora e, por vezes, perdermos a noção, pela quantidade de informação, do fio da palavra.
Em Abate da frota pesqueira a tensão da palavra arquivada vive no muro burocrático que o artista ilustra ao usar as caixas e os dossiers pertencentes à Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe como se fossem os tijolos desse edifício que se ergue, na construção da coisa pública, entre as pessoas, o Estado e as instituições.
A palavra contida dá lugar ali a um bloco surdo. Uma boca com a rigidez e a imobilidade da pedra.
Pedro Gomes serve-se de desenhos em papel químico e acrílico sobre papel para propor um discurso sobre o espaço arquitetónico partindo do seu reflexo. Os dos seus trabalhos cobre as paredes como se o desenho fosse realizado diretamente nela. Papel de parede ou uma segunda pele onde estão gravadas as linhas de uma existência que não é a sua, mas uma interpretação do que têm sido os dispositivos históricos museológicos.
Contra-Parede, de Ana Vidigal, Nuno Nunes-Ferreira e Pedro Gomes, com a curadoria de Hugo Dinis, está patente ao público até dia 10 de julho, no Palácio da Galeria, em Tavira.