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Albuquerque Mendes e Paulo Neves: Artistas homenageados na IV Bienal Internacional de Arte de Gaia

Desenrolando-se por três pavilhões da antiga Companhia de Fiação de Crestuma, em Lever, a IV Bienal Internacional de Arte de Gaia, apelidada desde a sua génese em 2015 como uma bienal de causas, regressa em 2021 numa edição maior e mais abrangente, que pode ser visitada até 10 de julho. Sob a coordenação de Agostinho Neves, a Bienal Internacional de Arte de Gaia 2021, organizada pela Artistas de Gaia – Cooperativa Cultural, CRL, com o apoio da Câmara Municipal de Gaia, conta, pela primeira vez, com o apoio do Ministério da Cultura e da Direção-Geral das Artes. Representando diferentes expressões artísticas – pintura, escultura, desenho, fotografia e cerâmica – a edição deste ano homenageia o artista plástico Albuquerque Mendes (1953) com a exposição antológica Eu, Albuquerque Mendes – Obras na Coleção de Serralves, com curadoria de Paula Pinto, e a obra do escultor Paulo Neves (1959), cuja curadoria da exposição antológica é assinada por Manuela Hobler.

Como num ritual, percorremos o espaço dedicado à obra de Albuquerque Mendes e rapidamente nos deixamos envolver pelo universo pictórico do artista, pela expressividade e intensidade das cores, pela força e intimidade das suas colagens e autorretratos, pela sensualidade dos corpos e das figuras femininas. Cruzamos pinturas que nos conduzem numa viagem pela história da arte portuguesa e por um percurso artístico que se inicia na década de setenta do século XX e que se mantém vivo aos dias de hoje. Mergulhamos no universo de Albuquerque Mendes, das personagens que povoam o seu imaginário – as mulheres, os soldados, os arlequins e os seus múltiplos eus – aos temas que o seduzem – cenas de intimidade doméstica, as paisagens, o sagrado e o profano – através de um percurso expositivo cuja organicidade nos conduz, de pintura em pintura, pelas diferentes fases de um artista interventivo, que sempre se soube reinventar.

Muito embora a exposição antológica Eu, Albuquerque Mendes – Obras na Coleção de Serralves verse sobre a obra pictórica do artista, tarefa difícil seria a de a dissociarmos da prática performativa. Tratando-se Albuquerque Mendes de um dos artistas homenageados da IV Bienal Internacional de Arte de Gaia, é inevitável recordarmos a importância das suas performances nos Encontros Internacionais de Arte e Alternativas, Festival Internacional de Arte Viva, eventos artísticos de descentralização cultural e de internacionalização, que no período pós-revolucionário constituíram um ponto de partida para uma arte de rutura em Portugal. Relembremos a performance Ritual do artista no II Encontro Internacional de Arte de Viana do Castelo (1975) em que Albuquerque Mendes, vestido como oficiante pagão, realiza um silencioso percurso simbólico e ritualista de crítica anticlerical, tornando-se “no primeiro português a praticar um contacto direto com o público dito não culto”[1]. As suas performances/rituais, estabelecem uma ligação entre a prática artística e o espaço urbano, “rituais reminiscentes de referências das procissões e das manifestações religiosas e profanas da cultura popular portuguesa”. Não deixa de ser curioso que da mesma forma que Albuquerque Mendes ritualiza o espaço público, encenando liturgias, por outro lado dessacraliza o espaço expositivo com as suas pinturas e colagens. Mesmo nas obras em que encena um discurso religioso, a ironia, a crítica, as duplicidades de sentidos parecem estar presentes, como se o artista, servindo-se da iconografia da religiosidade popular, questionasse o espetador, envolvendo-o nas suas heresias íntimas através da subtileza e do sentido de humor que caraterizam a sua prática artística. Assumindo-se como campo de experimentação, de provocação e de encenação, a pintura de Albuquerque Mendes possui um caráter teatral – o mesmo das suas performances – que se estende pelo espaço expositivo através dos dispositivos cénicos, cujas cores vibrantes nos envolvem e que circundamos numa descoberta surpreendente de novas obras, diferentes períodos e novos diálogos. A presença constante de um humor dada, a exploração de gramáticas e soluções plásticas da história da arte do século XX, como o cubismo, o futurismo, a pintura expressionista, as colagens, despertam a nossa atenção numa obra de caráter barroquista. Mesmo quando a sua pintura, como que se purificando, se torna mais depurada, em que a composição entre a figuração e o fundo surge mais subtil, mantém – como nas suas colagens e nos seus autorretratos – o sentido confessional e autobiográfico de um artista que nos habituou a servir-se do corpo e da tela como formas de expressão.

A influência barroca e a religiosidade, que caraterizam algumas das pinturas de Albuquerque Mendes, assim como o fascínio pela encenação e interação com o espetador, encontram-se também presentes na obra do escultor Paulo Neves. A dimensão cenográfica das suas esculturas e instalações, peças de chão e de parede, conduzem-nos pelo percurso de um artista contracorrente, cujo vocabulário formal e compositivo encontra na Natureza a sua melhor expressão. Contornando as instalações como num percurso de obstáculos, deixamo-nos seduzir pela imponência das peças, pela simplicidade e crueza da matéria, pelas formas ondulantes e curvas, pelos rostos que parecem dormir à espera de serem acordados. Intimamente ligada às suas raízes, às suas origens – Cucujães, Oliveira de Azeméis – a obra de Paulo Neves reflete uma simbiose perfeita entre o imaginário do artista, a sua mestria técnica e as criações da Natureza.

“O artista depara-se com o que a Natureza lhe oferece, no ar livre dos dias, abraçando o seu dom, admirando as suas formas brutas, adivinhando-lhe a sua origem e essência primeira. Ele tem um desejo desmedido de a transformar, como um deus impetuoso, mas no fim, quando a obra se apresenta, parece que nada foi violado, forjado dela, a não ser a sua própria matéria.”[2]

A ligação à terra e ao silêncio da floresta, onde se situa o seu atelier, inspiram o vocabulário artístico de Paulo Neves, um dos escultores portugueses contemporâneos mais presentes no espaço público e privado, nacional e internacional. É no convívio com a ruralidade, e por ela inspirado, que o escultor nos devolve a Natureza através de obras que conciliam a robustez dos materiais que lhe são próximos com o minimalismo da arte contemporânea. Situando-se pelos territórios do conceptualismo, do minimalismo ou mesmo da land art, a obra de Paulo Neves apresenta um rigor e uma sensibilidade invulgares, em que a escolha dos materiais se revela criteriosa. Ao universo quente da madeira e ao frio da pedra, o escultor associa materiais como o zarcão, o bronze, o ferro e por vezes materiais sintéticos, em obras que vão desde a pequena escala, à escala humana e monumental. Não obstante o caráter experimental que carateriza a prática artística de Paulo Neves, as variações de texturas e formas, há uma linha autoral que o torna reconhecível, como se o trabalho do artista fosse uma obra só, uma família. A exposição antológica do artista na Bienal de Gaia apresenta um imponente portefólio de escultura contemporânea, em que as obras em madeira são o ex-libris da mostra, revelando-nos por um lado o domínio artístico e técnico da matéria-prima pelo autor, e por outro lado a elegância com que a mesma foi tratada. Peças trabalhadas e metamorfoseadas pelas mãos e imaginação do artista, que guardam a memória e a robustez das árvores que já foram. Algumas das esculturas surpreendem-nos pelas pinceladas de cores vibrantes que as aproximam de um universo pop; noutras, a aplicação de folhas de ouro sobre a madeira transporta-nos para o universo do neobarroco e da talha dourada. Figuras antropomórficas, Santas, Anjos, formas embrionárias e abstratas, rodas, anéis e ocos traçados com linhas concêntricas, coabitam no mesmo espaço dando-nos a conhecer o universo poético do escultor que assume a passagem do tempo como preocupação temática de uma obra de dimensão política, social e ambiental. Terminamos o nosso percurso pela obra de Paulo Neves destacando a série de escadas que delicadamente encostadas à parede despertam o interesse dos visitantes pelas linhas tortuosas e contorcidas da madeira indomável que enfatizam a sua aparente fragilidade. Escadas que estabelecem uma ligação ao Sagrado, uma ligação entre o mundo e o transcendente, “são escadas que acentuam a duração do percurso, em vez de o reduzirem; são objectos para a vida da existência (subsistência) do caminho para Deus e não para a morte (chegada a Deus); são escadas do defeito e do erro, construídas ‘entre’ o céu e a terra.”[3] Influenciados pela alta escada branca de Paulo Neves e pelas pinturas e autorretratos de Albuquerque Mendes, recordamos o Auto-retrato (1932) de Helena Vieira da Silva, e é com a imagem de uma rapariga vista de costas, no meio da escada e olhando para cima, prestes a continuar a sua subida, que prosseguimos a visita pela Bienal.

 

[1] ÁLVARO, Egídio – “A Dimensão Performance de Albuquerque Mendes”. In Albuquerque Mendes, Porto: Galeria Canvas,1999, s/p.

[2] OCHÔA, Elisa – “A natureza artística ou a arte do natural na escultura de Paulo Neves”. In Atos do III Congresso Internacional Criadores Sobre outras Obras – CSO’ 2021. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, Lisboa, 2012, p. 223.

[3] PROVIDÊNCIA, Francisco – Paulo Neves, trinta anos de trabalho. Porto: Primavera’11, D.L. 2011, p.44.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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