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A primavera da arte em Milão é toda – ou quase toda – minimalista

Em Milão, após longos meses de confinamento devido à pandemia, chegou uma primavera algo estranha, pelo menos no que concerne ao mundo da arte.

Enquanto os museus públicos continuam a prolongar as exposições de inverno, contribuindo para um clima geral em que se parece vegetar, muito menos brilhante do que aquele que se vive em Roma, Milão verte o melhor da sua arte contemporânea nas galerias privadas, que mais uma vez se confirmam como o coração vivo da cultura visual da cidade.

Deve lembrar-se que, em boa verdade, Milão foi um lugar onde as vanguardas do século XX chegaram graças à ousadia dos galeristas: pensamos em Salvatore Ala, o primeiro a expor Keith Haring numa galeria italiana; em Guido Le Noci, que, com a sua Apollinaire, batizou o movimento dos Nouveaux Réalistes em 1960; em Il Diaframma, uma galeria aberta por Lanfranco Colombo em 1967, a primeira na Europa inteiramente dedicada à fotografia.

A galeria Milano abriu há quase cem anos, em 1928. Sob a direção de Carla Pellegrini, entre 1965 e 2019, a galeria foi palco de mostras significativas, como aquela realizada pelo arquiteto e designer Enzo Mari em 1973, sob o título Falce e martello: Tre dei modi con cui un artista può contribuire alla lotta di classe [Foice e Martelo: Como um artista pode contribuir para a luta de classes]. Agora, é a vez do artista italiano Riccardo Arena, que até ao fim de julho apresenta Hypae: Dove le cose cadono e non ritornano più a se stesse [Hypae: Onde as coisas caem e não voltam mais a si mesmas]. A exposição é o resultado de uma longa viagem pelos territórios do Irão, da Arménia e da Etiópia, misturando colagens, fotografias, esculturas, desenhos e materiais de arquivo, numa visão geral ligada ao universo antropológico e religioso, cheio de motivos tradicionais e arcaicos do Médio Oriente. Na galeria, lendas e mitos fazem-se acompanhar no contexto de uma instalação que lembra uma câmara das maravilhas, um diorama de uma outra época feito de estórias desconhecidas.

Porém, nesta primavera, Milão parece mais ligada a outros temas, como a redução das formas. Diga-se, a este propósito, que até 10 de julho está patente uma exposição imperdível na galeria Tommaso Calabro, votada ao diálogo entre os artistas Sol LeWitt e John Baldessari. From print to song: Baldessari sings LeWitt é o título desta fascinante mostra, com a curadoria de Paola Nicolin, que explora a relação entre os dois partindo do trabalho Baldessari sings LeWitt, no qual Baldessari canta as 35 Sentences on Conceptual Art (em 1972), um verdadeiro Manifesto da Arte Conceptual escrito por LeWitt (em 1968), em que este utiliza canções populares e músicas de programas da TV americana. Toda a exposição, distribuída pela totalidade das salas da galeria, vem contar-nos como os pais da Arte Conceptual e Minimalista da América do Norte encontraram na sua prática um sentido comum, embora estivessem quase nos antípodas em termos estilísticos. Para eles, fazer arte era um projeto com regras empíricas determinadas, que havia que seguir para se construírem obras que obedecessem a combinações muito precisas, cujas identidades fossem numéricas (assentes na matemática e na geometria, no caso de LeWitt) ou aferentes a uma recombinação de imagens encontradas (no caso de Baldessari).

Por falar em Arte Minimalista: até ao mês de outubro, a galeria Cassina Project acolhe X_Minimal, com a curadoria de Friederike Nymphius. Nos espaços que já foram oficinas aeronáuticas, na via Mecenate, encontramos 26 obras de grandes dimensões, algumas das quais criadas para a ocasião, como a cruz de Valentin Carron, que representou a Suíça na Bienal de Veneza de 2013, intitulada Mechanics and Animality. Mas a grande escala não se fica aqui: John Armleder, com os seus neons dispostos no chão; Alicia Kwade, com uma escultura leve feita em pedra e vidro, que olha para os tecidos que compõem Raum und Säule, de Franz Erhardt Walter; ou ainda Liam Gillick, Tatiana Trouvé e Heimo Zoberning. São somente alguns dos artistas representados nesta mostra, que nos deixa de queixo caído de tão muscular, de tão salutar para as salas de um museu. Se aprecia o Minimalismo contemporâneo em todas as suas formas, o sítio a visitar em Milão será precisamente este.

Quattro forme é o título da exposição que se encontra na galeria Vistamarestudio, na área de Porta Venezia. Tratam-se aqui também de quatro formas mínimas: a primeira é um bloco de alabastro, sobre o qual Ettore Spalletti colocou uma camada do seu maravilhoso pigmento azul; a segunda são os esqueletos das folhas da artista portuguesa Joana Escoval: Made to accompany the sound of a storm; Michael Anastassiades é o terceiro artista-designer, que pendura nas paredes os seus espelhos mágicos dourados e as lâmpadas chamadas a escandir o espaço com a luz; já Mario Airò vem celebrar o teto da galeria com uma flor de cala ou jarro, que só descobriremos levantando o nosso olhar: a flor é a última parte de uma escultura deveras contorcida, que sobe como uma cobra à entrada da galeria.

Já no final, mas ainda na mesma área da cidade, a visita continua pelo recente Case Chiuse, fundado por Paola Clerico. Aqui, o pintor “analítico” Giorgio Griffa surge em diálogo com o argentino Alejandro Corujeira, numa mostra intitulada Abrigo de luz: o resultado é uma série de pinturas leves, que formam um verdadeiro abrigo feito de cores e formas doces, reveladoras de uma prática pictórica lenta, entendida também como meditação.

Na galeria A Arte Invernizzi, Gianni Asdrubali é o protagonista de uma exposição que destaca os últimos quinze anos de trabalho do pintor italiano, mostrando as suas formas abstratas e modulares. A respeito da sua prática, Asdrubali explica: «Para ativar o espaço, é preciso que a obra seja fortemente autónoma, independente; que seja uma singularidade desligada de qualquer contexto, mas que seja ela mesma». Para Asdrubali, apenas a «obra por si só» pode construir o mundo; caso contrário, a obra não será senão um relato do mundo. Estamos, também aqui, na presença de uma exposição mínima, onde os gestos e as cores vêm definir o ambiente.

Por fim, o jovem artista Francesco De Prezzo apresenta uma exposição individual na Loom Gallery, intitulada Al limite del visibile [No limite do visível]. Deparamo-nos com um processo tal de redução da pintura que esta atinge o seu próprio esgotamento: o monocromático. Ambientes racionalistas com mobílias e panejamentos elaborados com roupas estendidas são os motivos inaugurais dos quadros de De Prezzo. Através de um processo de velaturas, o artista transforma-as em telas brancas ou pretas, deixando apenas os indícios do que foram. Quem sabe, talvez seja chegada a hora de calarmos e refletirmos… um convite lançado a todos por intermédio desta pintura.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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