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Início permanente: Rui Chafes na Galeria da Casa A. Molder

A exposição de Rui Chafes na Galeria da Casa A. Molder começa, sem que se saiba, na luz intensa e no rumor da teia urbana, muito antes de uma aproximação com o trabalho exposto. O caminhar pela rua, o entrar no edifício, o atravessar pela atmosfera da loja, todos esses movimentos do corpo, e a suposição de um real que cerca o visitante, demarcam mais que uma imensa moldura para aquele que acaba por entrar no espaço expositivo. E nesse sentido, o acolhimento da galeria é de uma adequação precisa.

Um momento importante para o encontro com a obra de Rui Chafes se dá na passagem pelo pequeno corredor que antecede à entrada na exposição. Ali, nesse lugar intermediário, entre o fora e o dentro, já se pressente a luminosidade reduzida a um mínimo no ambiente onde uma escultura irá emergir. Mas essa talvez seja uma leitura muito fria do acontecimento. Pois, é mais como se o mundo viesse a se apagar sensorialmente quanto mais próximo se está do encontro com a obra, até o ponto em que, um tanto desorientado, já no espaço da galeria, o espectador se dá conta da presença de um outro corpo que não o seu, o corpo da obra. Daí, será tragado inteiramente para a forma e a luminosidade que estabelece os limites da perceção e domina a relação sensível. Durante algum tempo, enquanto a visão procura se adaptar, é impossível dimensionar o entorno, mergulhado que se está na escuridão, e a escultura é o único ponto de referência que se oferece. O primeiro olhar parece esconder mais do que mostrar e é preciso jogar o jogo, a rodar às proximidades da obra como quem busca por uma porta de entrada. Aquele que a observa, a ela pertence e se agarra, enquanto se debate com a perda do mundo.

Tal como um casulo ou uma concha, a escultura em ferro, de um negro característico das obras de Rui Chafes, se abre o suficiente para que se imagine poder descobrir o seu interior, e ainda assim mantém a sua concisão quase inviolável, uma inteireza magnética. E quanto mais se procura, mais ela prende em encantamento. Quanto mais se adensa o olhar na escuridão, nas suas entranhas, mais impenetrável ela se transforma. Não há propriamente um peso, a escultura apenas repousa e ali, sobre o pouco chão que se pode ver, espera. Pura esfinge, a obra se apresenta para que o observador se dê conta de que só é possível sentir o seu toque na angústia da perda. Depois, pouco a pouco, é ela que se fecha e abandona os outros corpos no espaço da galeria. O que se passa no decorrer desse encontro, a dimensão da experiência, cabe a cada um que aceita entrar no jogo e devolve a si mesmo o enigma.

O ambiente, como uma fissura no mundo, carrega algo de solene. E para quem está familiarizado com a obra de Rui Chafes e a sua admiração pelo escultor medieval Tilman Riemenschneider, essa perceção do solene parece coerente. No entanto, é interessante observar como a sensação prescinde de qualquer antropomorfismo e se revela como essência. Georges Didi-Huberman, no livro O que nós vemos, o que nos olha[1], talvez ofereça uma ferramenta para perceber o que se passa ao recuperar o que ele chama de esboço de uma antropologia da forma no pensamento arguto de Carl Einstein, onde essa oposição entre abstração e organicidade seriam critérios estranhos à arte, e «a transcendência é sempre imanente à própria forma, na especificidade da sua apresentação».

Nesse ponto, importa atentar para a distância que pode parecer estranha entre as investigações sobre a escultura africana de Einstein e o trabalho de Rui Chafes. Mas não o será se esse movimento de recuperação contar com a observação de Didi-Huberman sobre o trabalho do historiador alemão no sentido de se pensar a forma não como coisa estática, mas como processo dinâmico de formação e deformação. «[…] toda a forma é formadora precisamente na medida em que se torna capaz de deformar organicamente, dialeticamente, outras formas já formadas». O trabalho de Einstein estaria entre aqueles que exerceram uma real dialética da imagem ao propor a superação de antíteses. Diante do declínio da crença na imagem, o que seria um atributo evidente da arte religiosa, caberia então à arte retomar na sua especificidade, ou na abstração, a eficácia perdida. Um desdobramento fundamental desse pensamento seria o estímulo a sempre buscar na forma (enquanto formação e apresentação) o princípio da sua eficácia, a inserir o espectador como parte essencial do processo e a afigurar-se na distância, no intervalo entre os corpos, nesta zona obscura, uma presença.

A exposição Início permanente, enquanto tempo (um tempo em suspensão, segundo o próprio artista), um efêmero, pode ser percebida nessa condição da possibilidade de encontro. Contudo, um encontro que pode ser um tanto desconcertante, obscuro e potente, cujas ressonâncias são equivalentes à intensidade do enigma que se estabelece na sua forma, no seu espaço e na sua visibilidade.

Início permanente, de Rui Chafes, está patente na Galeria da Casa A. Molder, em Lisboa, até 2 de julho.

 

[1] O texto toma como referência a tradução publicada pela Dafne Editora da obra Ce que nous voyons, ce qui nous regarde, de Georges Didi-Huberman.

Daniel Barretto escreve em PT/BR.

Curador. Atualmente a viver em Lisboa. Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil), está a cursar o Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes, na Universidade de Coimbra. No Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, foi responsável pelas coleções de Escultura, Arte Africana e Novas Linguagens, como também esteve envolvido em vários projetos curatoriais.

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