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Há sempre mais para ver: José Pedro Cortes na Galeria Francisco Fino

O trabalho de José Pedro Cortes resulta de uma observação atenta e próxima dos lugares que fotografa, como forma de lhes possibilitar a existência e transformá-los em imagens que ampliam as perceções visuais do tempo (e do espaço).

Corpo Capital, a sua mais recente exposição, na Galeria Francisco Fino, mantém-se ancorada no lugar – geográfico, corpóreo e construído – que vive de um encontro entre oportunidade e disponibilidade, tensionado pelas marcas de um tempo que se esgota. Mais do que uma encenação, há uma premeditação da ação e do momento: como se partilhasse agora o que viu antes.

As experiências na representação do lugar são transversais a todo o trabalho de Cortes, com a particularidade de não se condicionarem ou limitarem pelo contexto: partem dele. Em alguns dos livros que publicou pela Pierre von Kleist editions, como Silence, Costa ou Things Here and Things Still to Come, o enquadramento geográfico atua como estratégia visual, criando pontos de entrada no trabalho, para depois reforçar e introduzir questões latentes nesses lugares, menos óbvias ou em potência.

Em Realismo Necessário, exposição no MNAC (2018), Cortes justifica a sua prática, em relação aos seus interesses e na sua relação com a história da arte. Prossegue algumas destas estratégias editoriais através de um conjunto de imagens que intensificam a especulação, fragmentando séries fotográficas, às quais introduz imagens de outros tempos/séries que complementam ideias e relações. Nelas, a mistura e simetria de tempos e espaços leva-nos a realidades disruptivas e aparentemente dispersas. O limite entre o espontâneo e o encenado revela-se nos retratos e nos sujeitos fotografados, onde existe uma dimensão performática que se estende através da forma, do movimento e da posição/pose do corpo, que gradualmente se aproxima da abstração através do close-up, até deixá-lo em suspensão.

Mais do que memória, o processo de recontextualização mostra o seu interesse na possibilidade da imagem se renovar com o tempo, e da fragmentação como estratégia para novas compreensões, leituras e associações. Recorre frequentemente ao seu arquivo e banco de imagens, para estabelecer ligações, inusitadas ou imprevisíveis, através das quais cria interseções entre assuntos, assumindo uma fluidez discursiva entre os conjuntos de trabalhos.

Corpo Capital continua essas deambulações, desta vez a partir de uma perspetiva que implica proximidade, e que nos coloca no lugar mais íntimo, de voyeur. A imagem que abre a exposição, Shirt (2020), confirma-nos que há sempre mais para ver. Vemos de perto, por dentro. Uma imagem em gravidade que revela o espaço entre o corpo e o mundo.

O título Corpo Capital sugere uma centralidade que se move por um perímetro doméstico, um provável resultado do confinamento que reforça a necessidade de aproximação. A concentração e a edição da fotografia potenciam uma análise (mais) atenta dos ambientes, dos seus entornos e das tensões que existem na banalidade do quotidiano, dos detalhes, dos corpos e da natureza. Vê-se a fragilidade e a vulnerabilidade do tempo nas naturezas mortas de Nature I e Nature II; na presença do corpo (ou suas partes) fixado num movimento (Muscles, Foot and Nails); ou nas arquiteturas frágeis e temporárias, de andaimes e plásticos (Plastic Door, Structure). Make This Your Home – uma nova série de composições digitais manipuladas a partir de anúncios aspiracionais de agências imobiliárias – acrescenta a palavra à exposição e traduz alguns conflitos sem comprometer outras leituras. No seu conjunto, a exposição dá-nos evidências de um realismo imperfeito que constrói uma «narrativa partilhada que reconhece o tempo, os seus lugares, os seus objetos, as suas pessoas».[1]

Como é prática de Cortes, as imagens são cruas e cinemáticas, com escalas diversas que se relacionam por dispersão e associação, onde o olhar do espetador é essencial à construção de ligações e percursos. Há uma cadência na instalação das obras, que estende a singularidade de cada imagem, numa edição do espaço que remete para a paginação de um livro, onde se pensa a experiência estética do trabalho como um todo. Sente-se a atenção à organização e instalação dos trabalhos, que impõe um ritmo de leitura livre, mas focado no enquadramento, onde a coesão e o equilíbrio se notam da mesma maneira.

José Pedro Cortes observa a realidade banal, mundana ou invisível que nos circunda, e aventura-se numa investigação contínua da imagem e da fotografia entre os limites da superficialidade e da documentação do tempo/momento. Laurie Anderson (que o artista já referenciou no passado) diz-nos que «entre o pensamento e a expressão, está uma vida inteira» e, em Corpo Capital, Cortes mostra-nos que há um tempo cheio de vida que precisa de ser visto.

Corpo Capital, de José Pedro Cortes, está patente na Galeria Francisco Fino, em Lisboa, até 24 de julho.

 

[1] De acordo com a folha de sala da exposição, disponível na Galeria Francisco Fino.

 

Jesse James escreveu este texto no âmbito da Pós-Graduação em Curadoria de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com a qual a Umbigo tem vindo a desenvolver um projeto de colaboração.

Jesse James (Vancouver, 1987). Vive e trabalha entre Lisboa e Ponta Delgada como programador cultural e curador independente, combinando projetos curatoriais e a gestão estratégica de projetos, artistas e estruturas culturais. É cofundador e presidente da Anda&Fala – Associação Cultural e assume, desde 2011, a direção artística do Walk&Talk – Festival de Artes, projeto dedicado à criação e experimentação no campo alargado das artes. Em dezembro de 2020, inaugurou um novo projeto de programação e criação em Ponta Delgada, a vaga – espaço de arte e conhecimento. É cofundador e co-curador do Fabric Arts Festival em Fall River, Massachusetts, nos EUA. É licenciado em Turismo e Lazer pela ESTH/IPG, com especialização em Comunicação e Planeamento Cultural, e frequenta a pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH, da Universidade Nova de Lisboa.

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