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Carla Accardi e os contextos da sua pintura: Duas exposições em Milão

Construída entre 1934 e 1936 pelo arquiteto Piero Portaluppi, a Casa Corbellini-Wassermann, em Milão, é um dos prédios racionalistas mais bem conservados da cidade. Aqui, desde 2019, fica a segunda sede milanesa da galeria Massimo De Carlo, que existe também em Londres, Hong Kong, Paris e num salão no Palácio Belgiojoso, no centro de Milão.

Visitar a Casa Corbellini-Wassermann, além de entrar numa galeria, significa observar a história da arquitetura e do urbanismo próprio do período fascista em Itália, com os seus vestígios típicos de magnificência, espaços vastos e pormenores elegantes, criados a partir da observação e interpretação da  antiguidade clássica.

Nesta atmosfera insere-se a exposição Carla Accardi at Home, da artista italiana Carla Accardi, que mostra através de vinte e cinco obras um percurso que começa em 1954 e termina em 2013, um ano antes da sua morte. Sem pretender ser uma compilação completa, Carla Accardi at Home deseja, em vez disso, apresentar-se como um percurso íntimo feito pelos objetos simbólicos que provêm da casa-estúdio da artista, em Roma.

Lâmpadas construídas com material plástico, sobre o qual Accardi desenhava os seus sinais gráficos; pequenos quadros realizados em sicofoil, papéis plásticos industriais que viram a luz nas décadas dos anos ’60 e ’70 do século passado; vasos de cerâmica;  um pavimento – colocado no espaço do antigo quarto da casa – realizado em 2010, com feltro preto, vermelho e branco, que mede 16 metros quadrados; uma escultura transparente que se assemelha a uma espinha de peixe na cozinha e, na mesma sala, uma série de pratos também de cerâmica, realizados pela Bottega Gatti de Faenza, uma das mais conhecidas fábricas artesanais da Itália, são somente algumas das peças que se encontram por aqui, e que sublinham a identidade poético-abstrata da artista, nascida em Trapani (Sicília), em 1924.

Geométrico, racionalista, serial, capaz de jogar tanto com transparência como com opacidade, muito forte na dimensão doméstica, assim como nas possibilidades ambientais da pintura, o estilo de Accardi é um dos mais distintivos entre os artistas italianos do século XX mas, ao mesmo tempo, sempre esteve longe de pertencer à vanguarda de qualquer corrente.

Mulher do pintor Antonio Sanfilippo, com o qual se casou em 1949, Carla Accardi rejeitou durante toda a sua vida a etiqueta de «artista feminista», fiel somente ao seu universo privado de cores, formas e abstrações, que a tornaram num caso bem particular na história da arte contemporânea, ou melhor dizendo, na história da pintura abstrata internacional.

Além da exposição na galeria De Carlo, também o Museo del Novecento – ainda em Milão – homenageia a pintora até ao dia 27 de junho, com a retrospetiva Contesti.

Trata-se da primeira vez, depois ter tido exposições em museus como o MoMA PS1 de Nova Iorque (2001), MAM de Paris (2002) e Museu de Arte Moderna de Moscovo (2008), que um museu público italiano celebra a artista, apresentando a mostra como se fosse uma paisagem na qual se descobre a pesquisa da Accardi em relação ao seu período histórico, os anos mágicos e trágicos da Itália que vivia a sua idade de ouro após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 e 1960, bem como as dificuldades da década seguinte.

Contesti compõe-se de mais de setenta obras, instaladas sob a supervisão e o apoio de Francesco Impellizzeri, assistente de Accardi durante muitos anos e atualmente membro do seu Arquivo.  A exposição revela também os encontros com artistas mais jovens, com os quais Accardi se confrontava: «Brincando, eu e Carla dizíamos que a sintonia que tivemos era devida a Trapani, cidade da nossa origem: as suas cores e arquiteturas foram fundamentais na nossa formação», lembra Impellizzeri.

Duas exposições que constituem uma boa ocasião para redescobrir uma protagonista sem tempo, que teve a grande capacidade de não se conformar com modas, tornando visível a forma como a abstração – aquele bicho incerto da prática da pintura – se pode transformar num código preciso e fascinante, sem perder o seu mistério e valor conceptual.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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